Escrevi uma crônica anos atrás inspirada por um cantil de madeira entalhada que repousava numa mesinha de vidro na casa dos meus avós maternos. Eu era fascinada pelo objeto, que parecia me olhar e até falar comigo em espanhol.
Explico.
Lembro bem a primeira vez que ele me atraiu. O enfeite foi um presente para meus avós, ganho de uma amiga que vivia na Andaluzia.
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Logo, eu e minha irmã, pequenininhas, ficamos bem curiosas com as figuras esculpidas nas quatro faces da peça de madeira. Quando percebeu nosso interesse infantil, meu avô nos chamou para contar uma história — como era bom ouvi-lo! Sentadas ao lado dele, fomos sendo hipnotizadas por Dom Quixote de La Mancha e Sancho Pança, os rostos que apareciam no cantil. Com a fala calma e a voz baixa, o vô foi discorrendo sobre uma das obras-primas mundiais da literatura para duas crianças encantadas e atentas.
Assim, sem complexidade, nem tom professoral, conhecemos o herói e seu fiel escudeiro. Descobrimos peripécias do protagonista e seu trânsito por loucura, sabedoria, filosofia e poesia. Mas Dom Quixote era o de menos.
O ritual valia muito mais — e significa até hoje. Meu vô foi meu maior incentivador de leitura e escrita. Não por acaso, virei jornalista e fiz doutorado em Letras. Esse universo ainda me fascina e consigo perceber que pode ser fruto do olhar amoroso que tive enquanto criança. Às vezes, gosto de me reencontrar com aquela guriazinha que eu era.
Daquela tarde, guardo a narrativa gostosa, o modo afetuoso e desinteressado de transmitir conhecimento. E a importância e a riqueza de parar para ouvir, querer saber mais e mais. Não é lindo conseguir ensinar (ou aprender) sem pretensão?
Percebo que havia um empenho subliminar para saciar nossa curiosidade e nos fazer despertar para um mundo imaginário — e até então ignorado. Sou grata por esses momentos especiais que, volta e meia, reaparecem nos meus pensamentos.
O cantil não está mais na mesma mesinha, nem na mesma casa. Minha vó, que também não está mais aqui, me deu de presente desde que soube da minha ligação afetiva com ele.
Aliás, nunca mais pude olhar para a peça como antes — tornou-se uma espécie de objeto sagrado, com o poder de me transportar, instantaneamente, às lindas memórias da minha infância.
Ele recupera, em segundos, um mundo quase distante — mesmo assim, tão meu.
A melhor parte? Ainda posso escutar aquelas palavrinhas mágicas. E acho que vou conseguir ouvi-las para sempre. O cantil continua falando.
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