Fui uma criança que adorava desenhar. Não eram incomuns os dias que, cercada por lápis de cor e folhas - e depois de já ter inventado um bocado sozinha - sentava ao lado da minha mãe e perguntava:
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- Mãe, o que queres que eu desenhe?
- Uma árvore!
Desenhava a árvore toda bonitinha e repetia a pergunta:
- Mãe, o que eu desenho agora?
- Um cachorro!
- Uma casa!
- Um pôr do sol!
- (...)
- (...)
E eu ia desenhando, desenhando, desenhando e perguntando, perguntando, perguntando. Lá pelas tantas, minha mãe sentenciava:
- Tri, desenha um circo. Mas um circo, bem completo, com tudo o que ele tem!
Aí a diversão estendia-se e, volta e meia, era preciso recorrer à memória para lembrar a cor da lona, a roupa do palhaço ou a posição do trapézio. Era entretenimento por um bom tempo pra mim e, paralelamente, um pouco de sossego para minha mãe.
Hoje acho uma graça essa solução dela, que me instigava a olhar para o todo e criar a partir disso. A tentar fugir do óbvio, daquilo que parecia mais fácil. A encarar desafios – sim, eu era apenas uma criança e, na época, desenhar um circo parecia um desfio enorme. Costumamos olhar apenas para a nossa bolha, para o pequeno mundo que nos cerca. Sinto que essa visão sistêmica faz muita falta hoje.
Conversei dia desses com um jornalista recém-formado que estava bastante impactado por ter assistido a uma cena da vida real que fugia completamente do cotidiano dele. Estava impactadíssimo e, imaginei, era a primeira vez em seus 20 e poucos anos, que se deparava com o mundo sem a proteção paterna e o conforto que dispunha desde sempre. Falei a ele sobre privilégios e em como o jornalismo pode ser transformador, especialmente para quem acredita nele como uma maneira de mudar, inclusive, sua percepção sobre as coisas, sobre experimentar vidas que não são as suas, sobre abrir a mente para as diferenças e as exclusões. E para tentar eliminá-las.
Lembrei-me dos desenhos e da lição da minha mãe também ao ouvir a declaração do técnico do Bahia, Roger Machado, tão didática quanto impactante sobre racismo. Sábado passado, ao comentar sobre racismo no futebol, ele disse que sente que “há racismo quando eu vou ao restaurante e só tem eu de negro. Na faculdade que eu fiz, só tinha eu de negro. Isso é a prova para mim. Mas, mesmo assim, rapidamente, quando a gente fala isso, ainda tentam dizer: ‘Não há racismo, está vendo? Vocês está aqui’. Não, eu sou a prova de que há racismo porque eu estou aqui.”
É a prova de como temos dificuldades em olhar para o todo, em como é mais fácil ficar desenhando a árvore, a casa e o cachorro, sem precisar parar e olhar com atenção para o circo, com sua lona gasta e estrelas desbotadas, o picadeiro em más condições ou a meia-calça rasgada da trapezista cansada. É mais fácil apenas tentar contemplar a beleza e relativizar problemas históricos, atribuir um valor que não existe nele e poder dormir tranquilo. Por sorte, volta e meia alguém resolve demonstrar suas verdades, tão diferentes do senso comum, e provocar um desconforto que, tomara, seja um ponto de partida para desenhar novas – e verdadeiras - histórias.
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