“Escreva sobre isso: o tempo não volta, mas nós podemos fazer dele uma ilusão”. A sentença veio de um velho amigo da Bahia, na despedida de um inesperado encontro virtual por telefone. Sem planejamento, numa noite de sexta, éramos quatro amigos na mesma ligação, imagens simultâneas, as caras emocionadas e risonhas pelo resgate breve, mas intenso, de tantas felizes vivências comuns. Há quanto tempo não nos encontramos todos? Puxa, quase 30 anos! A vida tem disso, tem a tal roda vida que leva a gente pra lá – e me trouxe pro sul. Aí, de repente, no isolamento de uma pandemia, o milagre da tecnologia nos conecta em dias de Gêmeos, quando o mensageiro Mercúrio transita por Câncer, signo de memórias e interioridades. Aí, olha nós de novo, agora com o tempo validando exatamente aquilo que ele, o senhor dos relógios, não consegue devorar completamente: os afetos.
Fiquei pensando na frase do meu amigo, especialmente na palavra ilusão. Entendi o sentido que ele deu, de lenitivo contra a dureza do real. Se não podemos repetir o bom que passou, há sempre o consolo da memória. E esse consolo é balsâmico em momentos duros da vida, como os da presente realidade. Fomos testemunhas, naquela noite de clausura (fria e chuvosa aqui no sul), do quanto rir das doces lembranças nos deixou mais leves e alegres. Certamente sabemos que ilusão significa engano, distorção e alienação. Agora tente viver sem uma ilusão que seja. Tente suportar a dureza do cotidiano sem um sonho, um devaneio, uma distração, uma arte qualquer que o conduza na imaginação a outro plano. Astrologicamente falando, tente eliminar o planeta Netuno de seu mapa natal. Não rola, amigos. E se a ilusão é perigosa, também o é viver sem ela. Tudo é uma questão de medida.
A ilusão geralmente se vincula ao afeto. E Mercúrio em Câncer nos faz passear pela memória afetiva. Eu costumo parafrasear o mineiro Marcio Borges em seu célebre verso “sonhos não envelhecem”, dizendo que sonhos e afetos não envelhecem. Afeto é expressão do elemento água, cujos registros são impressos não nas páginas fugazes das agendas, mas nas paredes estruturais da alma, bem no fundo do ser. Pode haver sucessivas camadas de tempo a aparentemente soterrar velhos afetos. Mas estes sempre ressurgem, renovados, ao sabor de um sonho na noite, de um reencontro ou de alguma conexão inesperada. Por isso se diz que Câncer é o signo da memória fotográfica. A central de registros afetivos devolve fatos passados há muito como se tivessem acabado de acontecer.
Foi assim com a ligação que recebi dos amigos da Bahia. Em poucos minutos, parecia que estávamos outra vez nalguma mesa de bar, falando da vida entre cervejas e dúzias de caranguejos cozidos. E logo afloraram dúzias de histórias, personagens, lugares. De Porto Seguro a Arembepe, da mortalha do bloco aos apelidos hilários. Leveza puxa leveza nas costuras mercurianas. Eu mesmo me surpreendi em resgatar do fundo do baú o caso do cachorro debruçado no vaso sanitário do boteco, a beber água sofregamente. Quanta bobagem dita a partir daquela cena! Tudo era riso, como outra vez na sexta de agora, na ilusão do tempo revivido.
Pois é, meu caro amigo Luís Carlos, leonino de coração gigante, obedeci tua ordem. Sabemos o quanto a vida real anda feia e triste. Mas sigamos fortes com nosso baú de inesquecíveis afetos. “Nós sempre teremos Paris”, diz o casal do filme Casablanca ao tomar rumos diferentes, no conforto de um passado que seria eterno. E nós sempre teremos Salvador.