Pode haver melhor expressão do signo de Gêmeos do que uma obra realizada em dueto por dois geminianos? O atual movimento retrógrado de Vênus neste signo sugere resgatar do passado um belo exemplar da arte do diálogo: o disco gravado em junho de 1975 num show conjunto de Chico Buarque e Maria Bethânia. Nascidos a 19 e 18 de junho, respectivamente, os dois inquietos geminianos partilham do mesmo amor pelas palavras em múltiplas roupagens. No texto e no canto, nomeiam mundos e apontam as pontes e os desvãos da existência. Exalam a verve de Mercúrio, o deus de asas nos pés e no capacete, sempre abrindo movimentos e conectando pensamentos.
Não somente pela importância dos dois artistas, este é um disco histórico na MPB. Em 1975, a censura e a repressão seguiam firmes no regime militar. O jornalista Vladimir Herzog foi morto após sofrer torturas nas dependências do II Exército. A novela Roque Santeiro recebeu veto total no dia da estreia. Na música, Chico Buarque era um dos compositores mais visados. Em razão disso, seu disco anterior trazia somente canções de outros artistas. Outros, em termos. A faixa Acorda, Amor, narrando o pesadelo de ser levado na madrugada por agentes da repressão, era assinada por um tal Julinho da Adelaide, pseudônimo criado pelo próprio Chico, num drible malandro mercuriano. Quando o truque foi descoberto, os censores passaram a exigir RG e CPF dos autores. Daí, no disco ao vivo com Bethânia, a canção Tanto Mar, cuja letra evoca o fim da ditadura em Portugal, só foi autorizada em versão instrumental.
Só que ninguém pode calar totalmente os ungidos pelo deus do verbo inteligente. O disco/show abre com os dois geminianos cantando Olê, Olá, exaltando o valor da arte em tempos ruins: “Não chore ainda não, que eu tenho um violão / E nós vamos cantar”. A seguir, Bethânia entoa Sonho Impossível, com os versos de coragem: “Lutar, quando é fácil ceder / Vencer o inimigo invencível / Negar, quando a regra é vender”. Já a emblemática Sinal Fechado, de Paulinho da Viola, recebe da dupla a carga dramática exata de tensão e esperança por melhores dias. Sim, a vida seguia vazia e engarrafada, mas, atenção!, “o sinal vai abrir, vai abrir...”. Pois o trânsito e as estradas são temas de Mercúrio, o senhor dos caminhos.
Nos quesitos ousadia poética e subversão social, logo virão duas faixas em sequência, Sem Açúcar e Com Açúcar, Com Afeto, que atestam o talento de Chico para o geminiano diálogo entre pontos de vista diferentes e entre gêneros. Ambas as canções dão voz a mulheres em inéditas confissões sobre a relação com seus homens num universo cultural machista. “Eu de dia sou sua flor / Eu de noite sou seu cavalo”. No entanto, essa objetificação da mulher é rompida na revanche de Gota D’Água: “Deixe em paz meu coração / Que ele é um pote até aqui de mágoa / E qualquer desatenção, faça não / Pode ser a gota d’água”. E a voz firme de Bethânia também imprime máxima voltagem a versos de outros autores como “Nunca mais vai beber minhas lágrimas, não vai, não”.
E o repertório do disco segue tão contundente quanto emocionante, num total de 18 músicas – 12 delas da lavra de Chico – perfeitamente afinadas num roteiro de muitos subtextos. Era 1975, amigos! Passaram-se 45 anos, mas a potência desse disco permanece intensa e atual. Escutei-o inteiro dias atrás, para lembrar de como a inteligência, a arte e a comunhão sempre abrem luminosos horizontes mesmo sob o mais sombrio dos climas.
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