Durante muito tempo, Pelé foi “cancelado” do ambiente e do debate político, ou olhado com extrema desconfiança, por causa de uma declaração atribuída a ele ainda nos Anos 70, em pleno período de ditadura militar, de que “o brasileiro não sabe votar”. Uma declaração assim, vinda do maior astro do futebol, em anos de chumbo, época em que o direito ao voto estava suprimido ferreamente, caía como uma dádiva no colo dos governantes. Reforçava a opção da força, pelo sufocamento da democracia. Ocorre que Pelé não disse exatamente dessa forma, que foi uma simplificação passada adiante, e assim ficou. O que Pelé disse, a frase inteira, foi: “O povo brasileiro ainda não está em condições de votar por falta de prática, por falta de educação, e ainda mais porque se vota, em geral, mais por amizade nos candidatos.” Muda de figura. “Não sabe votar por falta de prática.” Ganha outra dimensão.
Ainda assim, a declaração, dada em 1977, foi usada favoravelmente no contexto político de então. E carimbou Pelé. Por anos, ele foi lembrado também por esse comentário, uma ressalva à sua luminosa trajetória no futebol – a maior de todas. Foi uma retumbante injustiça, pois Pelé, até pela própria origem, tinha e sempre teve sensibilidade social. Não por acaso, ao fazer o milésimo gol no Maracanã, em 1969, o jogo parou, o gramado foi invadido, Pelé chorou emocionado e, na sua primeira declaração aos jornalistas, ainda carregado nos ombros, lembrou das crianças brasileiras.
– O povo brasileiro não pode esquecer das crianças necessitadas. As casas de caridade. Olha o Natal das crianças, das pessoas pobres, dos velhinhos cegos (o gol foi em 19 de novembro de 1969). Vamos pensar nessas pessoas – desabafou.
Pelé chegou a ser tachado de “demagogo”. A despedida de Pelé repõe e reconhece sua real dimensão, que precisa contemplar a multiplicidade de suas facetas e ajustar as concessões considerando contextos e a humanidade de cada pessoa, que inclui erros, equívocos, manifestações impróprias, fora de hora e toda a sorte de fragilidades e vacilos inerentes à existência humana. Pelé falou algo que não combinava com o contexto, em dado momento. Quem nunca? Isso é um fragmento da história. Não foi a perfeição como pessoa, ninguém é. Vale para todo mundo. Somos muito duros, e temos de parar com isso. Ao fim e ao cabo, o conjunto da obra faz justiça a Pelé, sua contribuição em diversas áreas, sua sensibilidade social. Pelé é muito grande. Pelé é muito mais. Personalidade do planeta. O homem que interrompeu uma guerra. Atleta do século. Obrigado, Pelé, por tudo.