A tramitação relâmpago de matérias que interessam aos próprios parlamentares e seus grupos políticos tem se tornado uma lamentável e constante prática nos últimos anos na Câmara dos Deputados. Enquanto se omite em uma série de temas há bastante tempo discutidos e que esperam apreciação – o exemplo mais recente é o chamado PL das Fake News –, é incrivelmente célere quando se trata de legislar em causa própria.
A afronta da vez é a aprovação do projeto de lei que prevê punições para quem alegadamente discriminar as chamadas pessoas politicamente expostas
A afronta da vez é a aprovação do projeto de lei que prevê punições para quem alegadamente discriminar as chamadas pessoas politicamente expostas, grupo que inclui os próprios parlamentares, ministros, governantes, dirigentes de siglas, membros de cortes superiores e seus parentes diretos. O principal objetivo, ao que parece, é especialmente evitar que instituições bancárias restrinjam serviços financeiros ao conjunto de cidadãos enquadrados nessa condição. Mais estranho ainda é exigir que essa salvaguarda também beneficie réus de processos judiciais em andamento.
Ocorre que essas limitações existentes obedecem a ditames internacionais de prevenção à corrupção e à lavagem de dinheiro. A análise minuciosa da situação de pessoas politicamente expostas, devido aos riscos envolvidos, é uma prática internacional comum e preconizada pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Criminalizar essa conduta, portanto, significa afrouxar mecanismos de controle de desvios.
A proposta é da lavra da deputada federal Danielle Cunha (União-RJ), filha do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, cassado e preso por crimes como corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão fraudulenta de divisas. É uma autoria sugestiva em relação a propósitos, portanto. A desfaçatez da ideia, no entanto, não constrangeu os deputados, que aprovaram a matéria por 252 votos a 163, com apoio de partidos das mais variadas correntes, como PT, PL, União, PP, PSDB, PSD, MDB, PDT e Republicanos. Nota-se outra vez que, quando os interesses corporativos estão em jogo, diferenças ideológicas ficam de lado.
Mesmo assim, os deputados não abriram mão de uma estratégia usada sempre que pretendem evitar o devido debate e a mobilização da opinião pública: a tramitação a jato. O projeto foi discutido pela primeira vez na semana anterior. Não estava na pauta da Câmara para ser votado na quarta-feira. Mas o trator pilotado pelo presidente da Casa, Arthur Lira, foi novamente impiedoso. Acabou votado sem passar por comissões temáticas e sem que o texto do substitutivo fosse de conhecimento pleno dos próprios deputados, que conheceram o conteúdo minutos antes de terem de se posicionar. Todo o processo durou cerca de uma hora.
A Câmara, comandada por Lira, usou expedientes de natureza semelhante nos últimos anos. Basta lembrar da sessão de um minuto na Câmara para acelerar a aprovação da chamada PEC Kamikaze, em julho do ano passado. Felizmente, nem sempre há sucesso em conter a reação da sociedade, como o caso da PEC da Imunidade, em março de 2021, e o retrocesso tentado em agosto do mesmo ano, com a volta das coligações nas eleições proporcionais, barrada pelo Senado. Outro episódio recente de defesa dos próprios interesses, embora com tramitação mais adequada, é o esforço suprapartidário para chancelar a PEC que anistia partidos que não cumpriram cotas de sexo ou raça nas últimas eleições.
A proposta de criminalizar supostas discriminações contra pessoas politicamente expostas vai agora para o Senado. Espera-se que a Casa revisora da República enterre esse despropósito.