Se um dia o Brasil pretender ser um país desenvolvido, uma das mudanças coletivas de mentalidade tem de ser a de deixar de normalizar ineficiências e indicadores incompatíveis com a prosperidade almejada. Uma dessas excrescências é o desperdício de água tratada, tema de reportagem de Zero Hora na última superedição. Os patamares são ultrajantes, mas como o problema não é exatamente uma novidade, é como se fosse um fato com o qual a sociedade deveria se resignar. Não deve ser assim. Até porque a água, acertadamente, passou a ser considerada um bem finito.
Há consenso de que a única forma de reverter essa situação nada razoável é por meio de investimentos pesados
Os dados do Instituto Trata Brasil, lastreados em estatísticas de 2021 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis), mostram que, naquele ano, a cada cem litros de água potável tratada, 40,25 litros não chegaram aos consumidores. No Rio Grande do Sul, o nível de desperdício é ainda maior. Chega a 41,6 litros. As perdas ocorrem pelo caminho, especialmente em vazamentos em encanamentos antigos e sem manutenção adequada. Há ainda problemas de erros de medição e de consumo não autorizado. Observe-se que, na Bolívia, país vizinho e mais pobre do que o Brasil, o índice é bem menor, da ordem de 27%.
Essa é uma ineficiência geradora de vários problemas. Captar e tratar a água tem um custo para as empresas. Mas esse gasto acaba não tendo correspondência no faturamento das companhias de saneamento. Afinal, grande parte não chega no destino. Assim, as empresas recolhem de rios e reservatórios um volume de água bem acima do necessário. Além de pressionar as despesas, isso causa um problema ambiental nos mananciais onde a disponibilidade de água não é abundante. O quadro fica ainda mais problemático em períodos de seca, uma constante nos últimos verões no Estado. Note-se que, enquanto o líquido potável vaza pelo caminho e é perdido, existem, apenas no Rio Grande do Sul, 1,49 milhão de pessoas sem água encanada em casa.
Há consenso de que a única forma de reverter essa situação nada razoável é por meio de investimentos pesados. Ocorre que, no país, ainda predominam no setor empresas estatais com baixa capacidade de dispor de recursos nos montantes necessários para as correções no sistema de distribuição. No Estado, a Companhia Rio-Grandense de Saneamento (Corsan) – que atende a 317 dos 497 municípios gaúchos – tem um índice de perdas de 43%, acima das médias gaúcha e brasileira. A impossibilidade de as empresas públicas prestarem um serviço adequado à população também aparece nos números de tratamento de esgoto, tema que foi amplamente discutido no debate em torno do novo marco do saneamento.
A legislação abre espaço para o capital privado, com maior capacidade de investimento, entrar com mais força no setor. A própria Corsan foi privatizada pelo governo gaúcho, embora ainda restem empecilhos de ordem legal para finalizar a operação. O inequívoco é que, mantendo o modelo atual de domínio estatal, as deficiências tenderiam a se perpetuar. Os novos operadores são uma esperança para o cumprimento das metas de universalização do serviço de acesso a água potável, coleta e tratamento de esgoto. Em relação ao desperdício de água, o objetivo nacional é de reduzi-lo para 25%. Mas para atingir esses propósitos, também é vital contar com agências reguladoras fortes e que cumpram o papel de fiscalizar bem os serviços concedidos.