A recente escalada de tensões entre os Estados Unidos e a China desenha contornos ainda mais nítidos à dinâmica de uma nova Guerra Fria. Na segunda metade do século passado, os EUA, representando o capitalismo, e a extinta União Soviética, comunista, viviam sob constante tensão, que se estendia a seus aliados.
Agora, a mesma sensação está de volta, com um novo personagem, mas sem inspirações tão ideológicas. São as disputas comerciais entre Washington e Beijing que dão o tom do enfrentamento entre as maiores potências econômicas do planeta.
Convém ao Brasil, nesse contexto, agir de forma racional, na defesa dos seus interesses. Apesar da simpatia do presidente Jair Bolsonaro e de sua ala ideológica por Donald Trump, trata-se de um conflito no qual somos coadjuvantes, mas cujos efeitos nos afetam profundamente – para o bem e para o mal. Pelas muitas consequências de um alinhamento cego, o assunto precisa ser tratado como questão de Estado, contemplando os interesses nacionais de longo prazo, e não pautado por afinidades entre governantes transitórios.
Está nítido que, com a aproximação das eleições presidenciais norte-americanas, Trump tenta, outra vez, mirar na China como um inimigo a ser derrotado. Centrar energias em um adversário – real ou imaginário – na busca pelo voto é uma fórmula surrada, usada por líderes populistas para angariar apoio interno. O presidente norte-americano, neste momento, está em fragilidade pela postura equivocada frente à pandemia do novo coronavírus e, de acordo com a maior parte das pesquisas, em desvantagem ante Joe Biden, o oponente, do Partido Democrata.
O regime chinês, por outro lado, se transformou em uma ditadura capitalista com pinceladas de marxismo histórico e que tem claras ambições imperialistas. Talvez não queira exportar a sua ideologia, como tentava a União Soviética na Guerra Fria original, mas se aproveita de fragilidades em outros continentes e da própria postura norte-americana atual, de rechaço ao multilateralismo, para aumentar o seu campo de influência econômica. A tecnologia 5G, que vai revolucionar a internet, é hoje um ponto nevrálgico desse conflito. Trata-se de um mercado bilionário, global e de profundas implicações geopolíticas. Este, aliás, é o tema mais sensível que envolve o governo brasileiro. A nova frequência de celular, na qual os chineses largaram na frente, mas seguem envoltos em suspeitas sobre a segurança dos dados, tem leilão previsto para 2021.
Os EUA veem claramente a erosão de sua hegemonia e o crescimento da nova superpotência, que, aliás, se recupera rapidamente dos reflexos da pandemia – ou do vírus chinês, forma provocativa pela qual Trump se refere ao novo coronavírus. Enquanto isso, os EUA parecem distantes de controlar o contágio, a 98 dias da eleição.
O Brasil, ao longo de sua história, guarda maiores afinidades com a democracia americana. A China, por sua vez, se consolidou como o principal parceiro comercial brasileiro, com compras principalmente de produtos do agronegócio e commodities minerais. Espera-se que a ala comedida e racional do Planalto consiga fazer Bolsonaro entender que seria um erro o país se associar cegamente a qualquer um dos lados nesta batalha de acusações e retaliações nos campos diplomático e de negócios. Entre as vozes que precisam ser contidas, está a do chanceler Ernesto Araújo, que se notabilizou por colocar seus delírios ideológicos acima dos interesses de longo prazo do Brasil. Se ele não atrapalhar, o país pode defender suas posições e tirar proveito delas pragmaticamente, sem subserviência a Beijing ou a Washington.