Por Guto Leite, poeta, compositor e professor de Literatura Brasileira na UFRGS
É impossível não rastrear a presença de João Gilberto nas canções de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Paulinho da Viola, pra ficar só em alguns. João é um pai estético para todos eles. Esse tipo de paternidade não se ganha, se conquista, e João conseguiu esse feito pela maestria com que sintetizou parte da tradição brasileira naquela forma de tocar violão - foi o professor Walter Garcia (IEB-Usp) quem melhor estudou essa passagem -, pela interpretação vocal precisa, cheia de pausas, lacunas modernizadoras, investindo na qualidade e não na quantidade de som, e pelas síncopas extraordinárias na canção como um todo, jogando no limite do esfacelamento rítmico - é como se assistíssemos um equilibrista na iminência da queda, mas sempre seguro e magistral.
João Gilberto é um dos maiores artistas do século 20 e seguramente é responsável pelo florescimento da canção popular brasileira dos anos sessenta em diante, momento que talvez seja o ponto mais alto do gênero em qualquer tempo e em qualquer língua. Um artista desse tamanho é um patrimônio da sociedade brasileira. Angustia e incomoda, portanto, saber que ele não foi tratado como tal, diretamente, zelando por sua obra, por sua figura etc., ou indiretamente, apresentando e estudando a fortuna de suas criações e das criações que derivaram de seu trabalho nas escolas, nas universidades, nos centros diversos de cultura.
Agora João não sofrerá mais o Brasil, mas ainda é tempo de falarmos dele, ouvirmos seus encantos, esmiuçarmos e divulgar os sua obra. Também é tempo, como sociedade, de termos mais zelo por outros mestres como ele, Chico, Gil, Caetano etc., que estão vivos. João Gilberto está morto. João Gilberto não morre.