Por Igor Oliveira, consultor empresarial
No Brasil dos últimos anos, uma memória que seguidamente reaparece é a do filme Comédia do Poder. A produção de 2006 conta a história de uma juíza que, ao investigar um esquema massivo de corrupção, atinge pessoas cada vez mais poderosas na sociedade francesa. Aos poucos, a juíza vai percebendo que, quanto mais ela avança, mais poder acumula. O poder torna-se uma motivação para ir ainda mais a fundo, o que leva a personagem a questionamentos existenciais.
Em 2017, escrevi uma série de artigos sobre a corrupção na JBS. Entre outras coisas, me surpreendi com o acordo de leniência firmado entre a holding dos irmãos Batista (J&F) e o MPF-DF. Além de ter ficado barato para a empresa, o acordo, parcelado em 25 anos, previa que metade do dinheiro fosse destinado a dois fundos de pensão, Funcef e Petros, acionistas da JBS.
A Lei Anticorrupção, de 2013, diz que esse tipo de multa deve ser “preferencialmente destinado a órgãos ou entidades públicas lesadas”. Permite, portanto, alguma discricionariedade aos procuradores e juízes para determinar o destino do dinheiro.
Entretanto, destinar metade do dinheiro a instituições de previdência que representam apenas uma parcela dos acionistas da JBS é um absurdo. Fica evidente a confusão na cabeça dos agentes da Justiça: por serem Funcef e Petros fundos de pensão dos funcionários de empresas originalmente estatais, o acordo atribuiu a eles um caráter público quando, na verdade, são instituições privadas. E, pior, a homologação desse acordo criou um privilégio ao dar a esses grandes acionistas um status que não foi reconhecido aos pequenos.
A confusão entre público e privado também foi visível na tentativa, por parte de membros da Operação Lava-Jato, de constituir uma fundação privada para gerenciar dinheiro público oriundo de multas da Petrobras. Trata-se de uma versão judicial do velho patrimonialismo brasileiro.
Outro que frequentemente sofre com a Comédia do Poder é Sergio Moro. O fato de ter aceitado ser ministro após condenar alguns dos grandes adversários políticos do presidente eleito já é um paralelo perfeito com o filme. Seu pacote anticrime leva o enredo de Claude Chabrol a desdobramentos impensáveis na realidade francesa, porém plenamente possíveis no Brasil de 2019. Não deixe de assistir.