Por Ely José de Mattos, economista e professor da Escola de Negócios da PUCRS
Aos 12 anos de idade tive uma terrível crise de dor abdominal. Minha mãe me levou ao posto de saúde, onde, com um apertão na parte baixa da minha barriga, o médico concluiu: apendicite. Me encaminhou para que outro médico me operasse. Diante desse outro profissional, minha mãe estava nervosa e eu, com os braços em torno da barriga, com muita dor. Ele resmungou algo que não compreendi, para logo em seguida apontar o dedo para minha mãe e proferir em tom acusatório e raivoso: "Para operar vocês me procuram, né!?". Olhei para minha mãe que, atônita, não conseguiu responder. Em reação, impetuosa, respondi: "Nós não escolhemos nada, doutor, vamos para onde nos mandam". Diante da resposta, o médico se desarmou. Fui muito bem atendido — no final, ele descobriu que não era apendicite e nem precisei operar.
Sempre lembro este episódio quando deparo com prestação de serviços públicos como se fossem um favor. Nós, brasileiros, nos acostumamos a contar com o Estado como caridade. Quando vai para uma fila de posto de saúde às três horas da manhã para pegar uma ficha para consultar com um dentista, o cidadão é colocado na posição de alguém pedindo esmola, mendigando um atendimento "gratuito".
Um dos principais ingredientes para esta situação é a desigualdade indecente que impera no Brasil. A desigualdade socioeconômica cria classes na sociedade da pior forma possível, de modo que a relação entre elas e o papel que o Estado precisa desempenhar no atendimento a cada uma delas é muito complexo. Como a sustentação das classes, e aquilo que elas conseguem obter, é baseada no poder que cada uma tem, você já pode concluir onde a corda arrebenta.
A desigualdade no Brasil é um problema seriíssimo, e não apenas uma consequência qualquer do desemprego ou das escolas públicas ruins. Ela tem uma dinâmica de persistência própria, que envolve mais do que educação e emprego. Passa também por segurança pública, atendimento de saúde, gênero, raça, estrutura política, matriz tributária, cooptação do estado etc. Dada a sua complexidade e gravidade, ela deixa de ser um sintoma e precisa ser tratada como uma doença de fato.
Precisamos de todas as reformas que estão sendo discutidas no debate eleitoral. Mas, também, precisamos tratar da desigualdade não apenas como secundária aos problemas, mas como elemento condicionante de todo o resto.