Madrugada dessas, eu zapeava aleatoriamente na TV quando deparei com o ator Danny Glover todo suado tentando chutar um traseiro alienígena para fora de Los Angeles. Era Predador 2. Devo ser um dos poucos que preferem essa sequência ao filme original. Porque ela usa fartamente um dos elementos mais bacanas do cinema fantástico: o de brincar com os medos reais da plateia.
Nesse caso, um medo bem próximo: o da violência urbana fora de controle. Quando os policiais encontram corpos de traficantes dependurados e esfolados como lebres, os agentes mal dublados demoram a perceber que há um caçador interplanetário em ação. Deduzem apenas que a guerra interna do tráfico alcançou um novo nível de crueldade.
Compreensível. Predador 2 é um filme de 1990 que se passa em 1997, uma década depois do alienígena mostrar a cara de caranguejo pela primeira vez a Arnold Schwarzenegger.
No ano de produção do filme, Los Angeles estava próxima do seu ápice histórico de violência: registrou 983 homicídios. Uma média de 28 mortes a cada 100 mil habitantes. Se a coisa continuasse piorando naquele ritmo, não seria inverossímil um monstro passar despercebido pelo radar da polícia sete anos depois.
Peguei-me divagando sobre os plantões que fazia na editoria de Polícia de Zero Hora em 2010. Lembro de um domingo em que, após meia dúzia de ligações para delegacias, fiz as contas e me apavorei: "Caramba, 19 homicídios no Estado em um final de semana!". Aquele número ficou na minha cabeça. Em fevereiro passado, ouvi a Rádio Gaúcha anunciar um triste recorde: 40 pessoas haviam sido mortas entre sexta-feira e domingo. Em sete anos, um índice que já me assustava simplesmente dobrou.
1987, 1997... 2017! Juntei os pontos e saltei do sofá. Haverá um predador infiltrado entre Os Manos ou os Bala na Cara? Será que as notinhas em que nós jornalistas mal dizemos o nome da vítima executada – apenas ressaltamos preguiçosamente que ela tinha "passagem pela polícia e possível envolvimento com o tráfico" – escondem uma carnificina de outro mundo?
Mas o filme seguiu e, em determinada cena, tive a certeza de que não. Não é o desembarque de um alien no Pampa o nosso problema. A cena mostra o predador erguendo uma policial pelo pescoço, mas a vida dela é poupada. Porque, com a sua visão de calor, o monstro percebe um bebê na barriga da vítima. Trata-se do tipo de compaixão que o cobrador de ônibus Alessandro do Nascimento não recebeu no último dia 4, no bairro Restinga. Quando percebeu que uma execução sob o raiar do sol estava prestes a acontecer a poucos metros, ele tentou resgatar o filho com síndrome de Down do carro. Os criminosos resolveram, sabe-se lá por que, fuzilar o pai de família de 32 anos que nada tinha a ver com a disputa.
Los Angeles, diga-se de passagem, resolveu o seu problema de violência. Antes, ainda piorou um bocado. Em 1992 e 1993, a cidade ultrapassou os quatro dígitos em homicídios e resolveu dar um basta. Segundo uma extensa reportagem da Rádio Pública do Sul da Califórnia (KPCC), a solução não passou pela redução do consumo ou pelo combate ao tráfico de drogas. As ações mais eficientes tiveram relação com formas de aumentar a velocidade de resposta aos crimes conforme a gravidade.
Depois de assegurar que criminosos fossem rapidamente capturados e – ponto fundamental – afastados por décadas dos bairros em que haviam cometido assassinatos, a polícia passou a apostar em projetos de reaproximação com as comunidades conflagradas. O foco era a "desnaturalização" da violência. Combater a ideia de que aquele cenário sanguinolento era parte das suas vidas, sem direito a policiamento e segurança. Demorou, mas funcionou: em 1995, foram 838 assassinatos. Em 2005, 490. Em 2015, 280. Hoje, o índice se estabilizou abaixo dos 300 homicídios ao ano.
Enquanto isso, segundo o Mapa da Violência, as cidades gaúchas só fazem piorar. Em 2014, último ano do levantamento do Ministério da Justiça,
Porto Alegre chegou aos 577 homicídios por ano – são 39 a cada 100 mil habitantes, 11 a mais do que Los Angeles em um dos seus piores momentos. Cidades como Alvorada, então, com seus 65 homicídios a cada 100 mil habitantes, fazem o predador parecer o E.T. do Spielberg.
Algo me diz que isso está relacionado com o que estamos fazendo com os nossos predadores.
Ao mantê-los encarcerados em ônibus e viaturas, para em seguida jogá-los às ratazanas em masmorras onde não recebem nem comida do Estado, mas sim do líder de facção mais próximo, temos a sensação de que eles estão recebendo o que merecem.
Na verdade, estamos apenas tornando nossos monstros cada vez mais medonhos.