Quando Michel Temer jogou para cima aquelas mãozinhas de metacarpos bizarramente longos e disse "não sei como Deus me colocou aqui", o Brasil inteiro pensou em memes de Facebook.
Eu pensei no Al Pacino.
Pensei, na verdade, em John Milton, personagem do ator em O Advogado do Diabo. Esse filme, mesmo macabro, pesado e violento, fez um sucesso meio sobrenatural no Brasil. Nos Estados Unidos, por exemplo, ele não empolgou. Foi apenas o 29º mais assistido de 1997, ano em que foi lançado por lá. Por aqui, foi o quarto mais visto da temporada. Mais de 1,8 milhão de brasileiros foram ao cinema assistir à história de Kevin Lomax. O advogado vivido por Keanu Reeves começa a trama no banheiro de um tribunal, encarando o espelho e o primeiro dilema ético de sua carreira: acaba de descobrir que o seu cliente, um pedófilo, é mais culpado do que um tesoureiro de campanha.
Após contratar Kevin para o seu escritório de advocacia, Milton aos poucos revela sua verdadeira identidade. Ele mesmo. O Cão, o Canhoto, o Mochila de Criança. Lúcifer, em carne, osso, terno e gravata. E ele tem um grande bordão:
– A vaidade é o meu pecado favorito!
O professor de Teologia da PUCRS Erico Hammes me explicou que o próprio Belzebu foi vítima desse pecado. Lúcifer, diz o mito, não era apenas um anjo. Era o mais brilhante deles. Está até no nome: Lúcifer significa "o portador da luz", a "estrela da manhã". E tanto encheram a bolinha do Tinhoso que um dia ele se achou capaz de usurpar o poder de Deus. Tomou-lhe tamanho peteleco lá de cima que veio parar no mundo dos homens. Desde então, o Pata Rachada vaga entre nós tentando nos fazer cair na mesma tentação para fazer-lhe companhia debaixo da terra.
– Ninguém gosta de ficar sozinho, né? – conclui o professor Erico.
Pode ser que os brasileiros tenham gostado tanto do filme por identificação. Pelo menos os de Brasília. Por lá, a vaidade já elevou egos dos mais diversos partidos até o ponto em que caíram direto no colo do Capeta. Eduardo Cunha, por exemplo. Como líder do PMDB, ele já mandava e desmandava muito antes de chefiar a Câmara dos Deputados. Em 2013, eu mesmo, quando fui repórter de política, testemunhei ele torturar o governo federal com manobras proletórias por mais de 40 horas até concordar com a aprovação da MP dos Portos. Sabe Deus em troca de quê.
Era o suficiente? Não. Porque o poder por si só não bastava. Era preciso sentar no trono de presidente da Câmara, ditar manchetes, aparecer nas fotos, ter nas mãos a caixa de Pandora do impeachment e, por que não, abri-la e derrubar a presidente da República. Tanto aprontou que houve uma providência. Não divina, mas do ministro Teori Zavascki, que o afastou do cargo. Rejeitado por seus pares, perdeu o foro privilegiado e desceu ao inferno de Curitiba.
Que tal Dilma Rousseff? Ela mesma, uma técnica sem paciência para a politicagem, conta que a reação quando Lula veio com a ideia de torná-la sua sucessora foi uma sonora gargalhada. Mas sabe como é: a Mãe do PAC, a Coração Valente, a primeira mulher presidente do Brasil. Presidente, não, presidenta! Também Dilma começou a olhar para aquele penteado Celso Kamura no espelho e a gostar do que via. Logo desapareçam a seus olhos suas evidentes incompatibilidades com o cargo: a principal delas a incapacidade de diálogo com a base, que terminou apunhalando a petista em rede nacional.
Por décadas, Temer foi um quadro político discreto. Um sujeito aposentado aos 55 anos, presidente de partido, casado com uma bela jovem e pai de um garotinho, a poesia e a Constituição como hobbies. Resumindo, o vice perfeito. Também ele foi picado pela mosca azul. Quando viu, já ensaiava o discurso de posse no WhatsApp uma semana antes do impeachment. De tão inebriado, quando uma rádio argentina ligou para o Palácio do Planalto no dia da posse, Temer acreditou estar sendo parabenizado pelo presidente Mauricio Macri em pessoa.
Parabéns pelo quê, exatamente? "Parabéns pela deposição da sua companheira de chapa, senhor Temer." Como assim?
Então foi o Capiroto mesmo quem colocou Temer na presidência? Não. Mais uma vez, volto a uma cena de O Advogado do Diabo. No embate final entre Milton e Kevin, o Chifrudo mostra que todas as decisões do advogado desde aquele dilema no banheiro foram dele mesmo. Dá até exemplos. Quando a sua mulher – Charlize Theron, mais bela do que uma Marcela Temer – começa a enlouquecer, Kevin é aconselhado pelo Sete-Peles em pessoa a se afastar do trabalho. Mas ele se recusa, e por fim ela se suicida. Kevin fora vaidoso demais para abandonar os tribunais. E a vaidade é o pecado favorito de quem mesmo?
Talvez o Coisa Ruim tenha soprado no ouvido esquerdo de Temer como aquela faixa verde e amarela caía bem com os seus grisalhos. Mas o Diabo é mito. E mitos servem apenas para representar nossas próprias falhas e tentações, humanas como elas só. Quem colocou Temer lá não foi Deus, nem o Diabo, foi ele mesmo. Ninguém mais. Por vaidade.
Agora que aguente o soar das trombetas.