
Primeiro papa latino-americano em quase 2 mil anos de história, o argentino Jorge Bergoglio, morto nesta segunda-feira (21), deixa como legado uma igreja de perfil menos conservador, mais inclusiva e ecumênica em comparação a seus antecessores.
Sob o nome Francisco, que simbolizou a busca por simplicidade e paz em referência a São Francisco de Assis, procurou abrir as portas das igrejas a populações marginalizadas como gays, pobres e migrantes, e fortalecer canais de diálogo com outras confissões religiosas.
Durante os 12 anos em que usou o anel de São Pedro, realizou um número recorde de canonizações e nomeou 80% dos atuais cardeais com direito a voto no conclave que vai eleger seu sucessor — porém, na avaliação de especialistas, isso não é uma garantia de que o novo pontífice manterá o mesmo viés progressista que Francisco procurou dar à cúria romana até seus últimos dias.
Na avaliação do sociólogo e ex-frei dominicano Ivo Lesbaupin, coordenador da ONG Iser Assessoria e professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a ação de Bergoglio como líder dos católicos representa uma inflexão histórica no catolicismo mundial.
— Seu papado significou uma enorme lufada de ar fresco na Igreja, porque veio depois de dois papados conservadores: de João Paulo II, de 1978 a 2005, e de Bento XVI, de 2005 a 2013. Foram 35 anos de uma virada conservadora muito forte e que tem efeitos até hoje em termos de nomeações de bispos no mundo inteiro, em oposição ao avanço que vinha ocorrendo desde o Concílio Vaticano II. Francisco representa o retorno da influência do papel progressista do Concílio Vaticano II — analisa Lesbaupin, fazendo referência ao evento que procurou modernizar a Igreja nos anos 1960.
Para Lesbaupin, a preocupação de Francisco em acolher e valorizar os menos favorecidos diante dos altares é um reflexo direto de sua vivência como latino-americano.
— Ele promoveu pelo menos três encontros com movimentos populares, quando fez discursos bastante inovadores no sentido de valorizar a contribuição que vem dos pequenos, dos desfavorecidos, dos que lutam. Isso é reflexo direto de ser um papa da América Latina. Em Buenos Aires, Bergoglio havia realizado muitos trabalhos nas periferias — relembra o sociólogo.
O padre e teólogo Erico Hammes, professor emérito da PUCRS e professor sênior da PUC do Paraná, avalia que Francisco se esforçou para moldar um catolicismo menos autoritário, mais simples e misericordioso.
— O Papa procurou representar isso ao dizer que a igreja não deveria ser uma alfândega, que procura selecionar ou punir, mas um "hospital de campanha". Ele queria dizer que a função da igreja é receber as pessoas na situação em que estiverem, sem olhar para cor, identificação religiosa ou ideológica, mas acolher, acompanhar e cuidar até que estejam em condição de viver a sua experiência de fé — afirma Hammes.
Recorde de canonizações
Nenhum outro papa promoveu um número tão grande de canonizações quanto Francisco. Conforme um levantamento que o professor de Teologia da PUC de São Paulo Fernando Altemeyer Júnior encaminhou a Zero Hora, o argentino havia reconhecido 924 novos santos até fevereiro —recorde disparado em toda a história católica. Em segundo lugar no ranking de oficialização de novos santos, João Paulo II aparece com 483 nomes contemplados. Para Erico Hammes, isso também reflete a visão social de Jorge Bergoglio:
— Ele tem uma encíclica em que chama a atenção para a santidade cotidiana. A partir da Idade Média, a canonização ficou uma coisa tão extraordinária e elitista que muito raramente alguém poderia ser canonizado. Já o papa Francisco entendia que a santidade está muito mais presente na vida das pessoas.
Uma canonização coletiva contemplou de uma vez só, em uma cerimônia realizada em 2013, 813 italianos cristãos assassinados durante o cerco promovido por otomanos à cidade de Otranto em 1480.
Para este mês, estava prevista a santificação do também italiano Carlo Acutis, morto por leucemia com apenas 15 anos em 2006. Conhecido como "padroeiro da internet", por sua presença nas redes sociais, Acutis é um exemplo de como o papado procurou mudar o perfil das canonizações para se aproximar dos fiéis — inclusive dos mais jovens.

Eleitores papais
O legado de Francisco se estende ainda ao próprio colégio de cardeais que deverá escolher seu sucessor. Dos 252 religiosos cadastrados no site da Santa Sé, 135 estavam em condições de votar até esta segunda-feira (21) por terem menos de 80 anos. Deste grupo de votantes, 108 foram nomeados cardeais pelo último papa. Para Erico Hammes, porém, isso não é uma garantia de que o novo pontífice reproduzirá fielmente o viés progressista do último líder católico.
— Tenho dúvidas se ele imprimiu um viés progressista nos cardeais. Muitos deles ainda vêm de ambientes mais tradicionais. Não há muitos que são, digamos, disruptivos. Acredito que o atual colégio de cardeais aponta mais para uma linha intermediária e de estabilidade — aposta Erico Hammes.
Por conta da oposição conservadora de setores internos da igreja e, externamente, de grupos ligados à extrema direita, Ivo Lesbaupin acredita que o papado recém-concluído não conseguiu avançar como o planejado em áreas como a reforma da Cúria e a maior participação de leigos e de mulheres na estrutura religiosa.
— Francisco enfrentou uma oposição que, em alguns casos, como de representantes da extrema direita, nem o reconhecia como papa e fazia campanha aberta contra ele. Mas, por outro lado, foi muito apoiado até por cristãos não católicos — analisa o sociólogo.
A influência de Francisco
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Questão ambiental
Uma das marcas do papado de Francisco é a maior preocupação com o tema ambiental. Isso ficou cristalizado no lançamento da encíclica Laudato Si (Louvado Seja, em italiano), em 2015. No texto, manifesta que "tudo está conectado" no mundo e propõe uma visão integral da ecologia, desde a preservação das florestas até a discussão sobre modelos econômicos que favorecem meios de produção sem sustentabilidade.
— Com essa encíclica, ele assume o discurso da ciência, admite a piora das condições climáticas nas últimas décadas. É uma posição muito boa de valorização da ciência, e não de oposição, como no passado — interpreta o sociólogo Ivo Lesbaupin.
Reforma da Cúria
Para o teólogo e professor da PUC-SP Fernando Altemeyer Júnior, o papa Francisco conseguiu promover algumas mudanças significativas, como aprimorar procedimentos jurídicos ligados a denúncias de pedofilia, ampliar a presença de leigos e mulheres em certas funções, limitar o número de títulos honoríficos na instituição católica, criar uma comissão de controle do Instituto para as Obras de Religião e balancetes mais transparentes das contas da Santa Sé.
Conforme Altemeyer, "em função de sua firme decisão de reformar a Igreja", sofreu "pressão imensa dos quadros eclesiásticos da Cúria e de alguns episcopados (...), entre eles cardeais e alguns poucos bispos dos Estados Unidos, da Polônia, Espanha", entre outras regiões.
Papel de mulheres e leigos
Para o sociólogo Ivo Lesbaupin, não houve avanços tão significativos quanto se poderia esperar:
— No sínodo da Amazônia (encontro religioso realizado no Brasil em 2019), se imaginava que poderia sair uma aprovação à ordenação de homens casados. Isso chegou a ser discutido, mas não foi assumido.
O mesmo evento debateu a possibilidade de mulheres comandarem cerimônias religiosas, mas a proposta, combatida por setores mais conservadores, também não foi adiante. Lesbaupin lembra, porém, que Francisco conseguiu promover alguns avanços. Em janeiro, por exemplo, o papa nomeou pela primeira vez uma mulher para chefiar um importante gabinete do Vaticano — o departamento responsável pelas ordens religiosas da Igreja.
Visão sobre homossexuais
A visão de Francisco é de que a Igreja precisa estar aberta a todos, independentemente de orientação sexual, ideologia e outros quesitos, mas ele apresentou alguns sinais contraditórios ao longo de seu papado. Autorizou padres a abençoar casais de pessoas do mesmo sexo (além de divorciados), sob críticas de conservadores e de líderes católicos principalmente dos EUA, mas manteve o veto ao casamento homoafetivo. Também admitiu gays nos seminários, desde que mantenham o celibato como os demais.
Mais recentemente, despertou polêmica ao usar um termo considerado pejorativo, em italiano, para se referir aos homossexuais. Por conta disso, em uma rara retratação feita por um pontífice, pediu desculpas pela forma como se expressou.
Guerra e migrações
Nos últimos anos, o argentino passou a fazer declarações duras contra a guerra, principalmente no caso do conflito entre Rússia e Ucrânia, e em favor de migrantes e de refugiados. Em 2024, por exemplo, publicou em uma rede social: "Os rostos, os olhos dos refugiados pedem-nos para não virarmos as costas, não renegarmos a humanidade que nos irmana, para assumirmos as suas histórias e não esquecermos os seus dramas". Em relação à guerra na Ucrânia, declarou publicamente se tratar de um "desastre vergonhoso para toda a humanidade"