A carta trazia o tom corporativo de um CEO resolvendo uma briga por território entre dois gerentes de nível médio. Com prosa formal e listas numeradas, Ayman al-Zawahri, líder da Al Qaeda, instruía um dos afiliados do grupo na Síria a se retirar para o Iraque e deixar as operações naquele país para outra pessoa.
A resposta foi inequívoca. Abu Bakr al-Baghdadi, líder do Estado Islâmico do Iraque e do Levante, declarou que seus combatentes permaneceriam na Síria "enquanto tivermos uma veia pulsando e um olho que pisque".
Foi a primeira vez na história da organização terrorista mais conhecida do mundo que um dos afiliados rompeu publicamente com a liderança internacional, e a notícia provocou ondas de choque pelos fóruns de debate em que os jihadistas se encontram. Em termos claros, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante declarara independência.
A separação, em junho, foi um divisor de águas na grande descentralização da Al Qaeda e sua ideologia desde o 11 de setembro. Enquanto o poder da liderança central criada por Osama bin Laden declinou, a vanguarda da jihad violenta foi assumida por uma série de grupos em uma dezena de países da África e do Oriente Médio que atacam interesses ocidentais na Argélia e Líbia, treinam homens-bomba no Iêmen, conquistam território na Síria e Iraque e matam consumidores no Quênia.
Segundo especialistas, o que une esses grupos não é mais uma organização centralizada, mas uma ideologia vaga de que qualquer grupo pode se apropriar e aplicar como achar mais adequado enquanto ganha a mística de uma marca reconhecida. Em resumo, a Al Qaeda de hoje em dia é menos uma corporação e mais uma visão a estimular um grande leque de grupos militantes.
- A Al Qaeda é uma espécie de kit pronto. É uma ideologia portátil inteiramente desenvolvida, com símbolos próprios e formas de mobilizar as pessoas e arrecadar dinheiro para a causa. De muitas formas, não é preciso mais entrar para a organização para obter tais benefícios - afirmou William McCants, estudioso do islã militante no Instituto Brookings.
Para estrategistas e analistas do terrorismo, tal fato tornou mais difícil definir o que significa ser "Al Qaeda" e avaliar e combater ameaças. Além disso, discordâncias nas definições da Al Qaeda animaram debates em Washington sobre os executores do ataque de 2012 contra o complexo diplomático norte-americano em Bengasi, Líbia, em especial quanto ao grupo Ansar al-Shariah, de Bengasi. Embora as agências de inteligência e o Departamento de Estado não considerem o grupo como afiliado à Al Qaeda, republicanos críticos do presidente Barack Obama afirmam que sua visão puritana e contra o Ocidente o tornam um.
De muitas maneiras, as operações contraterrorismo dos Estados Unidos desde o 11 de setembro tiveram sucesso ao afligir a organização Al Qaeda original fundada por Bin Laden com o resto dos mujahedins que lutaram contra os soviéticos no Afeganistão na década de 1980. Ataques com aviões teleguiados eliminaram os líderes principais, a vigilância impede a comunicação com os afiliados e a morte do fundador removeu uma figura unificadora e carismática.
O modelo de franquia tem sido essencial à sobrevivência do grupo, ainda que isso signifique que os grupos afiliados muitas vezes sejam deixados sozinhos e se concentrem mais em lutas locais do que em atacar o Ocidente.
- Não existe mais uma Al Qaeda só. Ela adquiriu um toque local de onde se encontra, embora nenhum desses grupos tenha abdicado da jihad transnacional - afirmou Gregory D. Johnsen, autor de um livro sobre a organização no Iêmen.
O conflito na Síria, atualmente a maior atração no mundo para os jihadistas internacionais, exemplifica como pode ser difícil caracterizar os grupos militantes.
O Estado Islâmico do Iraque e do Levante, apesar de ter rejeitado Zawahri publicamente, tem milhares de combatentes estrangeiros que conquistaram território no Iraque e na Síria, onde busca fundar um Estado islâmico. O ímpeto em controlar recursos e impor códigos islâmicos severos provocou o retrocesso de outros grupos rebeldes, e a luta entre as facções matou mais de 1,4 mil pessoas nas últimas semanas.
A Frente Nusra, outro grupo da Al Qaeda na Síria, permanece leal a Zawahri, mas também manteve boas relações com o maior movimento rebelde que tem o mesmo objetivo norte-americano de se livrar do presidente Bashar Assad.
Além de sua afiliação aberta com a Al Qaeda, pouco separa a Frente Nusra de outros batalhões islâmicos combatendo na Síria. Um deles, Ahrar al-Sham, tem até um membro da Al Qaeda na liderança. Embora a visão islâmica desses grupos para o futuro da Síria possa perturbar muitos norte-americanos (e sírios), eles não atacaram alvos ocidentais.
- Existem muitos grupos militantes por aí que apoiam a doutrina islâmica, salafista ou jihadista, mas não estão fechados em relação aos EUA, então dá para chamar a todos de Al Qaeda? - questionou Clint Watts, ex-agente do FBI que agora trabalha no Instituto de Pesquisa de Política Externa na Filadélfia.
Ele e outros analistas sustentam que batizar todos esses grupos de Al Qaeda é contraproducente, fazendo mais sentido diferenciar os grupos com foco local daqueles com objetivo fixo de atacar o Ocidente.
Seguindo essa linha de raciocínio, o grupo mais preocupante é a Al Qaeda na Península Arábica, liderada por um parceiro de Bin Laden no Iêmen e que tentou atacar os Estados Unidos repetidas vezes. Segundo Watts, isso o torna uma ameaça muito maior do que grupos inspirados na Al Qaeda que pegaram em armas contra governos nacionais no norte africano ou o Boko Haram, que tem executado uma campanha de terrorismo sectário no norte da Nigéria.
Outros argumentam que mesmo os grupos locais se veem lutando uma batalha internacional da qual participarão quando puderem. Muita gente achava que o al-Shabab, afiliado à Al Qaeda na Somália, fosse local até que seus pistoleiros invadiram o shopping Westgate, em Nairóbi. E o misterioso jihadista argelino Mokhtar Belmokhtar parecia se concentrar em contrabando no Saara e em atividades de sequestro até que o grupo atacou uma usina de gás natural em Amenas, Argélia, em busca de estrangeiros para capturar e matar.
- Nenhuma ameaça da Al Qaeda permaneceu exclusivamente local: eles sempre terminam cruzando fronteiras e se tornando regionais em operações, ataques e, certamente, na arrecadação de fundos e recrutamento - afirmou Bruce Hoffman, diretor de estudos de segurança na Universidade Georgetown.
Até mesmo grupos sem vínculos diretos com a Al Qaeda podem se aproveitar de oportunidades para atacar alvos norte-americanos, como no caso de Bengasi em 2012 que terminou na morte do embaixador J. Christopher Stevens. Nesse caso, o foco norte-americano na Al Qaeda pode ter contribuído com o fracasso de prever outros perigos em fermentação nos arredores.
Porém, embora o contraterrorismo possa ser eficiente em deter ameaças específicas, privar os grupos militares de ambientes instáveis onde florescem e se organizam é muito mais complicado.
- O que se vê no Oriente Médio é um problema de militância combinado com território desgovernado. Esse é o verdadeiro problema, não quais grupos pertencem à Al Qaeda e como podemos nos livrar deles - disse Ramzy Mardini, pesquisador do Conselho Atlântico.
Terrorismo
Descentralização da Al Qaeda dificulta avaliação e combate de ameaças
A organização hoje em dia, segundo especialistas, é menos uma corporação e mais uma visão a estimular um grande leque de grupos militantes
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