O percurso acidentado na van vacilante é um prenúncio da íngreme ladeira para o Morro da Providência, a favela mais antiga da cidade. Última parada: uma pequena e tranquila praça com loja de materiais de construção, bar e uma dupla de policiais jovens com colete à prova de balas e carregando metralhadoras, patrulhando a estação do teleférico ainda não inaugurada que a prefeitura construiu recentemente. Avista-se, então, o porto lá embaixo.
Motivadas por dois megaeventos que estão chegando - a Copa do Mundo no ano que vem e as Olimpíadas em 2016 -, as autoridades locais estão lutando para reinventar esta cidade pertencente anteriormente ao terceiro mundo, mas com uma economia de primeiro.
Em novembro, a demolição começou em uma via movimentada que corta a área do porto, para abrir espaço para um calçadão e o novo veículo leve sobre trilhos.
O prefeito do Rio, Eduardo Paes, está fazendo de tudo para melhorar o trânsito, construir escolas novas, pacificar e integrar as favelas, onde um a cada cinco habitantes mora, ao resto da cidade.
Porém, como demonstram os meses de protestos nas ruas, os ideais progressistas vão de encontro a problemas antigos e incuráveis nessa cidade onde a diferença de classe e a corrupção são quase tão imutáveis quanto as montanhas. Ela nada mais é que uma cidade divida por si mesma.
Essa divisão se mostra mais aparente do que nunca no gigantesco plano de reforma do porto, orçado em US$ 4 bilhões, que pretende transformar uma área industrial do tamanho de Lower Manhattan em um entroncamento brilhante e cheio de arranha-céus para um novo Rio global.
Coração histórico da cidade, com raízes portuguesas e afro-brasileiras, em uma mistura de armazéns, maquinaria pesada e antigos cartões-postais, o porto também engloba bairros como o Morro da Conceição e Saúde, Gamboa e Santo Cristo, enclaves bonitos, mas pobres e dilapidados de casas multicoloridas e ruas calçadas com pedra.
Washington Fajardo, consultor do prefeito para questões urbanas e preservação histórica, me mostrou o cais de pedra, para navios imperiais e negreiros, que foi desenterrado há pouco tempo nos arredores do Morro da Conceição e foi transformado em patrimônio cultural.
Entretanto, a reforma do porto é, na maior parte, um negócio de interesses imobiliários e comerciais, outro exemplo, queixam-se os críticos, de um governo a serviço das incorporadoras, com um novo Museu do Amanhã (seja lá o que for isso), com o formato de um isópode gigantesco se contorcendo, cujo projeto é de Santiago Calatrava, um arquiteto de ontem.
Não existe plano mestre, nenhuma garantia de que o que é bom e válido para preservar na mistura urbana do porto existente não será sacrificado pelo mar de torres de escritórios. As promessas recentes do prefeito de incluir duas mil unidades de habitação popular chegaram atrasadas e são vagas, anunciadas para acalmar os detratores sem irritar os investidores.
E enquanto o prefeito promete a consolidação ao redor do porto remodelado, o Rio se espalha de forma incontrolável na direção oeste. Quilômetros de vias movimentadas, condomínios fechados, shoppings e congestionamentos tornam a área chamada Barra da Tijuca cada vez mais indistinguível dos arredores de Dallas ou de Fort Lauderdale, Flórida. Se puderem, os cariocas, como são chamadas as pessoas que moram aqui, compram dois carros e um apartamento em uma torre na Barra, como se ainda vivêssemos em 1974.
No centro da Barra encontra-se um símbolo dos gastos perdulários do Rio e da divisão de classes: um novo centro de arte, a Cidade da Música, projetado pelo arquiteto francês Christian de Portzamparc, diante de um shopping gigantesco com uma réplica da Estátua da Liberdade na frente. Projeto iniciado durante a administração anterior, cujo orçamento de US$ 250 milhões estourou em mais de cem por cento e enfiado no meio de uma via de trânsito pesado, o centro gerou reclamações raivosas por não estar em contato com a cultura e as reais necessidades da cidade.
Um complexo de teatros de concreto, erguido sobre píeres gigantes, o centro pode ser o mais absurdo prédio novo em anos. Ele pode nos lembrar da famosa piada com Stonehenge do filme "Isto É Spinal Tap", na qual os projetistas do palco para um show de rock confundem pés com polegadas - só que as proporções aqui estão invertidas. Encarregados reclamaram comigo sobre trechos inteiros de poltronas inúteis sem visão, palcos com projetos ineptos, bastidores sem camarins, espaços imensos varridos pelo vento e escadarias dando em nada.
Mais a oeste, a Vila Olímpica, acelerando o crescimento urbano, fica em um local que se tornará habitações de luxo com o fim dos jogos. O desenvolvimento ameaça despejar a antiga favela da Vila Autódromo.
Eu caminhei pelas ruas tranquilas e sulcadas da favela. Crianças brincavam em uma cama elástica quebrada, vinha música de uma igreja, uma família me levou para conhecer a vista do terraço para os pés de manga e goiaba na baía.
Altair Guimaraes, presidente da associação dos moradores, se levantou depois de uma soneca na rede após trabalhar no turno da noite e balançou a cabeça. - Não é preciso massacrar as pessoas para fazer megaeventos -
A história não é tão simples.
Nas áreas operárias ao norte da cidade, como no Méier e em Madureira, a prefeitura está fornecendo novas clínicas, linhas de ônibus e construindo escolas.
Eu visitei o Parque de Madureira, trecho de 2,4 quilômetros de extensão de concreto e verde, que custou US$ 50 milhões, com um palco gigantesco para samba e fonte, construído sobre um terreno onde antes ficavam linhas de transmissão de alta voltagem. O lugar foi um divisor de águas para os moradores de um bairro superpovoado e com pouquíssimo espaço aberto.
No Méier, visitei um antigo cinema onde Bob Dylan e o Dylan brasileiro, Tom Jobim, já se apresentaram, mais tarde transformado no Centro Cultural João Nogueira, com várias salas de cinema, espaço para exposições e terraço. Idosos tomavam banho de sol e adolescentes flertavam à sombra de uma treliça de concreto.
Contudo, ao lado dessas reformas, outros projetos públicos não fazem sentido. Os projetos do Minha Casa Minha Vida são conjuntos habitacionais sombrios para os pobres, de baixa qualidade, que proliferam ao redor da cidade, muitos no extremo da zona oeste, uma distância grande de onde os moradores reassentados costumavam morar.
O Morar Carioca, programa público que pretende reunir arquitetos, moradores de favela e autoridades públicas, prometeu soluções colaborativas para as reformas. Quando consultados pelo programa, os residentes do Morra da Providência disseram querer ruas limpas e pavimentadas.
Em vez disso, a prefeitura decidiu construir um teleférico, em conjunto com um bondinho funicular e um centro cultural celebrando a vida na favela, todos os quais exigem despejos. Muitos moradores agora se lamentam do Morar Carioca.
- As favelas não são apenas lugares pobres cujos moradores são objetos de 'projetos de renovação' - , como assinalou Jailson de Souza e Silva, fundador do Observatório de Favelas, uma agência social. - O segredo é a participação -
Essa ainda não é uma prática comum aqui. Representantes da comunidade da Providência conseguiram uma liminar judicial para retardar a construção do funicular.
Roberto Marinho, 38 anos, presidente da associação de moradores, trabalha como gerente de uma imobiliária no centro. A casa onde ele mora com a esposa e dois filhos é uma das que teriam de ser demolidas.
- Nós temos varanda e terraço, e o apartamento da Minha Casa Minha Vida para onde querem nos mudar seria um grande retrocesso - , afirmou Marinho.
Favelas como a Providência, incubadoras históricas do samba e do funk carioca, poderiam ser, de uma perspectiva, modelos do que Paes defende: diversas, densas, desenvolvidas organicamente, verdadeiros enclaves de habitação acessível - o oposto do Minha Casa Minha Vida.
No entanto, os teleféricos e as atrações culturais, o kit de ferramentas padrão das reformas da prefeitura de hoje em dia, servem como boas ilustrações para folhetos das Olimpíadas e apresentações do PowerPoint, mesmo que não sejam necessariamente o que os moradores da Providência e do Rio de Janeiro mais precisem.
Conseguir o apoio da comunidade demora. A colaboração é lenta.
O Rio tem pressa.
- Nós queremos o diálogo, uma conversa. Eles nunca nos escutam de verdade - . Essas foram as palavras de Marinho.
Infraestrutura e sociedade
Mesmo buscando a modernidade, Rio de Janeiro enfrenta antigos problemas sociais
Autoridades cariocas lutam para reinventar a cidade para a chegada de eventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016
GZH faz parte do The Trust Project