Ainda Estou Aqui fez história nesta quinta-feira (23) e quebrou um tabu de duas décadas no cinema brasileiro. O longa de Walter Salles recebeu três indicações da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas: melhor filme, melhor filme internacional e melhor atriz para Fernanda Torres.
Fazia 26 anos que um longa brasileiro de ficção não era indicado à categoria de melhor filme internacional. Central do Brasil, de Walter Salles (mesmo diretor de Ainda Estou Aqui), foi selecionado para a cerimônia de 1999, mas perdeu a estatueta para o representante italiano — A Vida É Bela, de Roberto Benigni.
Na mesma edição, Fernanda Montenegro representou o país por Central do Brasil na categoria de melhor atriz, que foi vencida por Gwyneth Paltrow (Shakespeare Apaixonado).
Em relação à categoria de melhor filme, há um debate. Há quem defenda se tratar da estreia de um filme brasileiro na categoria; porém, há quem cite a coprodução americana/brasileira O Beijo da Mulher-Aranha, que já concorreu ao Oscar de Melhor Filme em 1986. Dirigida pelo argentino naturalizado brasileiro Hector Babenco e rodado no Brasil, o longa contou com elenco e equipe predominantemente internacional.
De qualquer maneira, Ainda Estou Aqui obteve um feito expressivo, que há muito tempo o cinema nacional não alcançava. Mas não foi por acaso.
"Oscar também é campanha", diz crítico
Ainda Estou Aqui teve a maior campanha de todos os tempos para um filme nacional. É o que destaca o crítico de cinema e youtuber Waldemar Dalenogare Neto, que integra a Critics Choice Association e é autor do livro Histórias do Oscar: Os Anos Iniciais (2019).
Ele observa que, nos últimos anos, os filmes enviados pelo país entravam no circuito dos EUA com uma rodagem bem limitada de festivais ou mesmo sem uma grande distribuidora. Desta vez, o longa de Salles tem uma grande distribuidora consolidada: Sony Pictures Classics.
— Oscar também é campanha. Desde a estreia em Veneza, Ainda Estou Aqui conseguiu uma repercussão extraordinária com apoio da distribuidora nos Estados Unidos. Destaco a participação do elenco, especialmente Fernanda Torres e Selton Mello, além do diretor para participar do circuito de campanha e dar visibilidade ao filme. Penso que isso fez toda a diferença — avalia Dalenogare.
O longa recebeu convites para mais de 50 festivais internacionais, segundo relatou Salles, com a equipe do filme se desdobrando em eventos ao redor do mundo.
A campanha de Ainda Estou Aqui também se direcionou para sessões especiais, contando com jurados de premiações (especialmente da Academia), que, muitas vezes, contam com artistas mediando um bate-papo com a equipe — já ocorreram com o ator Sean Penn, com o diretor mexicano Alfonso Cuarón e com o diretor francês Olivier Assayas.
Prestígio do cineasta é diferencial
Vale ressaltar também que Salles tem trânsito no mercado internacional — tendo dirigido produções como Dark Water (2005) e On the Road (2012). Para Daniel Rodrigues, presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (Accirs), o prestígio do cineasta é um grande diferencial. Ele também realça a qualidade do filme:
— Acredito que consiga transitar por um tema importante de ser trazido de uma maneira, digamos, popular. É um longa passível de ser assistido por diversos públicos, como de fato está se mostrando — analisa Daniel.
Outros fatores foram determinantes para a campanha de Ainda Estou Aqui. Tendo sua première no tradicional Festival de Veneza, o que já é um indicativo de força do projeto, o filme obteve no evento o prêmio de melhor roteiro. Posteriormente, Fernanda Torres recebeu o Globo de Ouro de melhor atriz em filme de drama.
Entre outras premiações, Ainda Estou Aqui venceu o prêmio da audiência do Festival Internacional de Cinema de Vancouver, no Festival de Pessac, na França, e no Festival de Cinema de Mill Valley, nos Estados Unidos.
A trajetória bem sucedida também se reflete na crítica internacional, que aclamou o filme e a atuação de Fernanda Torres. Ainda, o site Deadline chamou o longa de "carta de amor de Walter Salles ao Brasil", enquanto o jornal britânico The Guardian o descreveu como um "drama sombrio e sincero sobre os desaparecidos da nação".
O fator Fernanda Torres
Outro ponto essencial da campanha, que resultou na quebra da maldição, foi Fernanda Torres. Desde o início, a atriz está entregue à campanha do filme, se desdobrando em entrevistas para veículos internacionais e participando de festivais e exibições do longa. Em conversa com o jornal O Globo, Fernanda brincou: "Meu trabalho virou maquiagem, cabelo e look".
A campanha de um filme para o Oscar consiste em fazer sessões para pessoas estratégicas, como a própria atriz explicou na entrevista, além de fazer a produção circular em festivais. A ideia também é despertar nas pessoas o desejo de ver o longa, alimentando também o boca a boca.
Para a campanha, a presença física faz diferença. É nesse ponto que Fernanda tem se desdobrado, como relatou em outra entrevista a O Globo: "Achei que ficaria dezembro em casa, mas já estou de volta à Europa, com sessões em Londres, Paris, Madri e Porto. Em janeiro, volto a Los Angeles". "O importante é fazer o filme ser visto", completou.
Atriz se aproximou das novas gerações
O carisma de Fernanda é um caso à parte na campanha: a atriz costuma esbanjar bom humor e respostas afiadas nas entrevistas. Ao mesmo tempo, sua espontaneidade é aclamada pelo público brasileiro.
Por conta de memes e cortes de seus trabalhos nas séries Os Normais e Tapas & Beijos, além de entrevistas antigas sendo recicladas em vídeos virais, Fernanda se aproximou das novas gerações nas redes sociais. Isso se refletiu em uma publicação no Instagram em 18 de novembro.
O perfil oficial do Oscar, The Academy, postou um registro de Fernanda Torres na entrega do Governors Award que chegou a 3 milhões de curtidas, com centenas de milhares de comentários empolgados de brasileiros.
A partir daí, a imprensa internacional percebeu que qualquer postagem nas redes sociais com a foto da atriz garantiria curtidas. Desde então, em muitas postagens sobre o Oscar 2025, a mídia internacional utiliza fotos de Fernanda ou de Ainda Estou Aqui como meio de atrair o expressivo engajamento brasileiro. Indiretamente, isso também chama atenção para o filme.