
A Parada 65 de Gravataí, no bairro Santa Fé, é o retrato do descaso. Lá, os cartazes afixados nas placas das ruas e anúncios nas redes sociais propagandeavam, em 2010: "Não existe nada igual ao Residencial Florença. Preço imbatível, financiamento total, estrutura de qualidade, certeza de entrega".
O empreendimento, um dos maiores daquele município, seria erguido com recursos do programa Minha Casa Minha Vida, quando estava em construção. Jamais foi concretizado. Os edifícios nunca foram habitados, apesar de os mutuários pagarem as prestações.
Reportagem do Grupo de Investigação da RBS (GDI) mostra que, só na Justiça Federal, tramitam 2.891 processos relativos a problemas construtivos ou abandono de prédios populares no Rio Grande do Sul.
Três empresas estão por trás da história do Residencial Florença. O empreendimento se originou de um grupo organizado pela Mérica Brasil, via sistema de crédito associativo. Ela encomendou o prédio à construtora Indec-Promodal, que captou recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), por meio da Caixa Econômica Federal, e entregou 93,5% da obra, em julho de 2012. Se retirou e a tarefa foi repassada, via escritura pública, à construtora Cubbos, que avançou um pouco, mas paralisou a construção em 2015.
Dos 202 apartamentos previstos (112 unidades na fase 1, e 80 na fase 2), nenhum jamais foi ocupado pelos compradores. Os imóveis da fase 1 foram praticamente concluídos, embora sem área comum e com falhas estruturais graves, que impediram a ocupação por parte dos donos. Já os da fase 2 nunca foram iniciados, embora alguns tenham sido vendidos na planta.
O advogado Rafael Paiva Nunes, que representa a Associação dos Adquirentes do Residencial Florença, considera esse o pior caso de defeito construtivo do país. Os prédios são marcados por rachaduras, como se um abalo sísmico tivesse assolado a região. As paredes estão com mofo, os telhados perderam telhas ou desmoronaram.
Por um tempo, no jogo de empurra entre construtoras e a Caixa Econômica Federal, os edifícios ficaram sem guardas e, ante o abandono da obra, as esquadrias foram saqueadas. O mato hoje tomou conta do que seriam as áreas de lazer do futuro residencial. O que era para ser um conjunto habitacional modelo virou um esqueleto, um empreendimento fantasma a assombrar as memórias e o bolso dos mutuários que embarcaram na proposta.

Tiago Fatturi de Souza, especialista em Tecnologia da Informação, é um dos que sonhou viver no Residencial Florença. Pagou R$ 240 mensais por um apartamento de dois quartos e 50 metros quadrados de área. A garagem seria coletiva. Teria piscina e salão de festas. Nada ficou pronto, apenas a estrutura externa do prédio, que, pelos defeitos, tampouco se tornou habitável. Ele colocou R$ 7,5 mil do FGTS na compra, mais R$ 5 mil em prestações e mais R$ 3 mil de juros da obra, em anos subsequentes. Nunca sequer recebeu as chaves do apartamento, nem pode ocupá-lo.
O técnico em Química Édson Claiton Machado Flores também adquiriu um apartamento no Florença, em 2009. Tinha 23 anos e seria o seu primeiro imóvel próprio. Nunca recebeu as chaves. Usou o FGTS para pagar o imóvel. Nos cálculos dele, desembolsou R$ 24 mil em seis anos, dos R$ 51 mil orçados. Nunca conseguiu ocupar a residência.
— Caso não pagasse, iria para o SPC ou Serasa. E com as construtoras, o que acontece com elas por não cumprirem o contrato? Hoje moro de aluguel, desembolso R$ 500 mensais, o dobro do valor da prestação.
Nunes, defensor desses dois mutuários do Florença, acredita que imóveis de financiamento popular são mais suscetíveis a problemas como abandono e vícios construtivos.
— Por ter menor poder aquisitivo, o cliente da CEF vinculado ao Minha Casa Minha Vida tem menos formas de exercer pressão. Aí é esquecido — resume ele, que conseguiu na Justiça ganhar causa que determina a retomada das obras do Florença no verão de 2021.
A CEF é ré solidária, em processo judicial de indenização por danos morais e materiais. A situação dos prédios está tão deteriorada, no entanto, que Paiva acha que precisam ser demolidos e reconstruídos.
Contrapontos
O que diz a Indec-Promodal:
A reportagem não conseguiu contatar a empresa. Há dois anos, questionado sobre a obra parada, um dos procuradores jurídicos da Promodal disse que a responsabilidade pelos prejuízos decorrentes do atraso no término da construção é exclusivamente da Caixa Econômica Federal. Segundo a justificativa da época, a Promodal já havia construído 95% da obra quando “foi alijada do prosseguimento por decisão arbitrária e desproporcional da CEF. Não faz sentido atribuir a responsabilidade pela ausência de conclusão dos prédios em 2019 à Promodal”.
O que diz a construtora Mérica Brasil:
A reportagem tentou contato com dois sócios, sem obter retorno.
O que diz a construtora Cubbos:
Um dos sócios da construtora, Alan Cristian Tabile Furlan, diz que sofreu represálias por ter encontrado falhas gravíssimas nas fundações do residencial, feitas por outra empreiteira.
— A parte superior dos prédios não estava ligada nas estacas. A estrutura não tinha como se sustentar, porque estava suspensa. E começou a afundar. Fui chamado para consertar, fiz um orçamento de R$ 2,5 milhões, a CEF concordou em pouco mais de R$ 1 milhão, mas a seguradora do prédio disponibilizou pouco mais de R$ 100 mil. Quando mostrei que o projeto e a execução tinham sido falhos, em depoimentos à própria CEF, fui afastado da obra. E ela está desde então desse jeito, abandonada — resume.
O que diz a Caixa Econômica Federal:
"Em relação ao Residencial Florença, localizado em Gravataí, esclarecemos que as obras foram paralisadas pela construtora original e o seguro foi acionado, com contratação de nova empresa, que abandonou o empreendimento antes de sua conclusão. Diante disso, a CAIXA acionou a seguradora J Malucelli, responsável pela retomada da obra, para que providencie a substituição da construtora e continuidade da obra, com expectativa de que isso ocorra dentro de 90 dias.
A CAIXA ressalta que as construtoras que não concluíram as obras, bem como seus sócios, estão impedidos de contratar novas operações com a CAIXA."