
A inteligência artificial (IA) se alastra pelo mundo com novas atualizações e possibilidades surgindo diariamente. Para além do senso comum, de criar imagens e textos, a ferramenta pode ter incontáveis outras finalidades.
Quem explica é o especialista Miguel Lannes Fernandes, 39 anos, fundador da startup Witseed, focada em inteligência artificial para aprendizagem corporativa, que foi vendida para a revista Exame, do BTG Pactual. Após a transação, ele assumiu como diretor das iniciativas de IA da revista, além de coordenar o MBA de Inteligência Artificial para Negócios da Faculdade Exame.
Formado em Engenharia da Computação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com 20 anos dedicados ao mercado de IA, Fernandes, que mora em Portugal, enxerga, hoje, a ferramenta como grande impulsionadora para a evolução da humanidade.
No campo do ESG, destaca, a ferramenta pode ser uma importante aliada na execução de boas práticas ambientais, sociais e de governança.
A IA, até pouco tempo atrás, era tida como ficção científica. Isso mudou nos últimos anos, e a população está começando a ser fortemente impactada pela ferramenta. Como tu enxergas esta popularização?
Essa comparação é ótima porque é exatamente o que acontece. A indústria da tecnologia é bastante influenciada pela ficção científica. Podemos pegar 2001 — Uma Odisseia no Espaço, onde tinha o Hall, um computador com uma inteligência sobre-humana, até a ideia de casas inteligentes da série Os Jetsons.
Todas essas experiências que as pessoas tiveram em filmes de ficção científica são, de alguma maneira, frutos da imaginação humana, e há uma expectativa de que algum dia possamos chegar a isso. Os engenheiros estão querendo fazer aquilo e, ao longo dos anos, vemos que vai ver se tornando realidade.
Em um, dois anos de existência da OpenAI, já temos em todos os lugares do mundo, não exatamente o ChatGPT, mas ferramentas muito parecidas. E as pessoas já conhecem, como o Instagram, como a internet. Vamos ver um avanço da robótica, que vai evoluir muito rápido por conta da IA. Do ponto de vista do trabalho em escritórios, cada vez mais será incorporada essa tecnologia, como incorporamos a própria rede social, o Word, o Excel.
E este avanço pode, por exemplo, reduzir postos de trabalho?
Existe, sim, um alarmismo de que profissões vão acabar. Elas vão todas ser modificadas, como foram pelos computadores. Profissões que eram valiosíssimas deixaram de ser. E profissões que não eram tão valorizadas passaram a ser muito. Ironicamente, profissões que demandam alto contato social vão ser cada vez mais valorizadas, porque a máquina não consegue ter esse contato. Não é que empregos vão acabar, mas vai ter um deslocamento em algum momento da nossa história.
Os profissionais que dominam as tecnologias vão ser cada vez mais bem pagos. E isso gera uma tendência. As pessoas vão aprendendo a programar máquinas, e máquinas vão ficando mais fáceis de serem programadas.
Nós, como sociedade, estamos agora nesse dilema: o que faz sentido delegar para as máquinas? Não há mais limites técnicos. Tudo o que vimos na ficção científica, até agora, é possível de se realizar nos próximos anos.
Olhando para as diretrizes ESG, como tu achas que a IA pode ajudar a implementá-las?
Elas podem usar a própria IA para ter ideias de como fazer isso. Você expõe para o ChatGPT, para o Claude, para o DeepSeek, o modelo que quiser, o contexto da sua empresa, e pede para ele te dar ideias. E você escolhe as ideias que ele te sugerir, pergunta como é que você pode implementar.
À medida que a ideia vai sendo implementada, você vai alimentando-o com o que está acontecendo e ele vai te dando mais ideias. Esse é um caminho. Por outro lado, a inteligência artificial gasta muita energia.
Ao mesmo tempo em que a IA pode ajudar nas questões ambientais, quanto mais ela ganha espaço, mais consome recursos. Como equilibrar?
Imagina que eu preciso ter um computador muito potente, com um chip que processa, recebe vários sinais elétricos e faz cálculos muito rápidos. É preciso ter um ventilador para resfriar esse chip. Então, são muitos ventiladores ligados ao mesmo tempo. E precisa de uma grande quantidade de água para ir resfriando esses ventiladores, além do espaço que isso ocupa. Essa é uma limitação da IA.
Um dos motivos para que os países árabes, da região do Oriente Médio, tenham recebido muito investimento é porque a regulamentação ambiental é quase inexistente, bem como a regulamentação em relação à privacidade. Eles estão construindo no meio do deserto um monte de data centers para alimentar as empresas de inteligência artificial. Hoje, não temos uma solução em vista para esse problema.
A IA é uma ferramenta que pode nos ajudar nesse sentido. Eu aposto que a cura do câncer é algo que vai acontecer nos próximos anos, graças a ela, bem como vacinas e medicamentos. A longevidade vai aumentar, nós vamos viver mais, melhor e com mais prazer.
Já no pilar da governança, como a IA pode ajudar a entregar mais transparência, melhorar a análise de dados e apoiar decisões estratégicas?
Hoje, um dos problemas maiores quando a gente fala de dados não é exatamente o acesso aos dados. O problema é que eles, às vezes, estão disponíveis em um formato que eu não sou capaz de entender. A partir do momento que eu consigo alimentar uma IA com esses dados e ela consegue gerar um texto que organize esses dados para mim, de modo que eu compreenda, vou começar a me interessar mais por ler aqueles dados e questionar o que eles estão trazendo. Posso começar a fazer perguntas para esses dados.
Essa é uma tendência que eu vejo as empresas adotarem. Hoje, a maior parte delas paga uma versão do ChatGPT ou do Claude ou do Microsoft Copilot para as equipes usarem, mas a tendência é de que elas desenvolvam suas inteligências artificiais próprias.
A pessoa não vai conversar diretamente com o funcionário da empresa, mas com uma IA da instituição. E a empresa pode decidir quais informações ela quer disponibilizar e para qual pessoa. Temos um potencial de aumento de transparência por conta da melhor capacidade de leitura que as pessoas vão fazer.
Os melhores CEOs do Brasil, as pessoas com os cargos mais altos nos governos, estão, certamente, fazendo prompts para inteligências artificiais específicas, avaliando diferentes cenários para tomar as suas decisões. O CEO que não está usando a IA para tomada de decisão vai ficar para trás, porque não tem como competir com o que esteja usando.
Na questão do social, como tu achas que a IA pode ajudar na criação de políticas externas para os colaboradores?
Você não precisa de nenhuma IA para ver que uma mulher com uma determinada característica no mesmo cargo ganha menos do que um homem no mesmo cargo. Para isso, você pode usar o Excel. Você consegue em poucos minutos chegar à conclusão. Se a empresa está dizendo que, agora, finalmente vai conseguir fazer isso por causa da IA, desconfie, porque provavelmente ela está só querendo ganhar mais tempo.
E aí de novo vem para a questão de transparência, porque ela pode dizer que faz, mas não tem como saber se ela está fazendo ou não. Tem toda uma discussão nesse sentido.
E a IA tem todos os nossos vieses. Se você for para uma IA de geração de imagem e falar "faz a imagem de um CEO bem-sucedido", ela vai fazer um homem branco de terno em Nova York. Por quê? Porque a maior parte das fotos com a descrição CEOs bem-sucedidos que ela viu na internet são de pessoas de terno, brancas e em Nova York. Então, precisa ter muito cuidado com os vieses da IA.
Ela tem uma possibilidade de diminuir a pobreza e a miséria, mas também aumenta a desigualdade, porque aquela pessoa que não sabe escrever, nota zero, ela agora consegue escrever. No mínimo é nota cinco. Só que o cara que era 10, agora ele é mil. De novo, mais um dilema da IA.
Você acha que a ferramenta pode ajudar na redução da carga de trabalho no Brasil?
Aqui na Europa, dizem que a IA pode tornar possível a semana de quatro dias. Já ouvi pessoas públicas aqui em Portugal falando isso. A semana vai ter quatro dias porque não vai precisar mais de cinco? Não, é porque a IA vai conseguir dar esse aumento de produtividade.
Aí você vai para o Brasil e a pergunta é: o que a gente vai fazer com o tempo extra? O que o patrão vai fazer com essas oito horas a mais que os seus funcionários ganharam? Ele vai deixar ficar um dia a mais descansando? Não é porque a IA promete mais produtividade que as pessoas vão trabalhar menos ou vão ser menos exigidas. Quando você for mais produtivo, você vai ter que ser mais produtivo. Você nunca vai chegar em um nível de produtividade que você não precise aumentar. Essa é a verdade. Por mais IA que você use. A IA é simplesmente uma nova moda do capitalismo.
Mas depende de como cada país usar, de como cada país vai ter suas legislações para regular isso. Porque não é só benefício.
No Brasil, não temos regulamentação definida. Segue em tramitação o PL 2338/2023.
Um dos problemas no Brasil é que não temos uma indústria de IA. E quando as inteligências artificiais que estão disponíveis no mercado foram criadas, não havia regras. Quando colocamos essas regras que praticamente proíbem a criação de uma Open AI brasileira, estamos nos condenando a usar somente as soluções que já existiam antes da regulamentação acontecer.
Essas soluções não foram criadas no Brasil. São empresas americanas, chinesas ou europeias, em geral. Então, se fizermos uma regulamentação que basicamente impede a existência de modelos nacionais, a gente está dando um tiro no pé. E é esse o caminho que estamos seguindo agora. Estamos fazendo a mesma coisa que fizemos com as redes sociais. Vai ser assim: Estados Unidos e China produzem, a Índia dá a mão de obra, a Europa cria as leis e o Brasil é o tubo de ensaio.
A regulamentação é necessária, mas a questão é para quem ela é boa nesse momento. Eu não regulamentaria nada agora. Ajudaria o mercado a se desenvolver e, quando tivéssemos empresas brasileiras robustas o suficiente, faria um grupo com essas empresas, criaria uma estratégia de regulamentação. Melhor do que simplesmente replicar o que acontece lá fora, limitando a nossa capacidade de ter soluções nacionais.
Aqui no RS, por exemplo, tivemos a maior enchente da nossa história. E algumas empresas estão tateando um caminho para se reerguer o mais rápido possível, mas já querendo que isto ocorra de modo sustentável, reduzindo riscos e prevendo futuros problemas. Como a IA pode ajudar?
Em relação a prever os problemas, um dos desafios que temos no Brasil é a infraestrutura. Temos boas conexões nos centros urbanos, mas entre os centros urbanos é péssimo. A internet não funciona. O wi-fi é ruim. O 5G é ruim. Além disso, não temos sensores instalados medindo as condições climáticas, fotografando as regiões.
Para a IA funcionar bem, ela precisa de uma matéria-prima que são os dados. Teríamos que fazer um investimento forte nesse tipo de tecnologia, não para as empresas monitorarem a produtividade, mas também para fazermos previsões e nos anteciparmos a desastres naturais.
Não vai dar um retorno financeiro calculável. Você não tem, do ponto de vista econômico, político, um ROI (retorno sobre investimento) que seja imediato, indiscutível. É difícil você convencer as pessoas a gastar dinheiro com isso, mas é o único caminho possível. Se não tivermos sensores e conectividade para fazer esse monitoramento, não conseguimos treinar modelos de IA capazes de identificar em quais condições teremos esses tipos de desastres acontecendo.
Do ponto de vista das empresas, acho que é começar a se educar sobre IA, ver o que está acontecendo no mercado e eventos sobre a ferramenta, trazer eventos também para a cidade. Por acaso, o Rio Grande do Sul é um lugar onde nunca fiz nenhum evento de IA.
Como instruir as pessoas em relação ao uso da IA de maneira sustentável?
É realmente um trabalho educacional. Precisamos colocar nas escolas, nas universidades. Não é para você ter a universidade de IA e só quem estuda isso aprende. Tem que ter esse tipo de conhecimento acessível para todas as pessoas. Isso aumenta muito a produtividade das empresas e o retorno é muito rápido também. Essa é a vantagem.
Se você dá uma formação para o seu time em IA, em uma semana você já vai ver um aumento de produtividade, talvez em um dia. Se você mesmo começar a usar, é imediato. E a própria IA pode te ajudar a aprender sobre a ferramenta. E, também, é uma tecnologia que os mais velhos têm mais propensão a usar melhor.
A IA é tão simples instrumentalmente como um WhatsApp. É simplesmente mandar uma mensagem e receber uma resposta. E se eu tiver um repertório cultural, profissional e de vida mais extenso, eu vou ter melhores perguntas e eu vou ter uma melhor capacidade de criticar as respostas. O lance é perder o medo e começar a usar a ferramenta que ela vai te ajudar muito.