Documentos históricos do século 19 produzidos por órgãos do governo imperial no período da escravidão e supostamente furtados foram resgatados nesta sexta-feira (25) em Capão da Canoa, no Litoral Norte.
Os registros estavam em posse de dois irmãos, conhecidos por comercializar livros raros pela internet, que exibiam os exemplares nas redes sociais, segundo o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Rio Grande do (MPRS). Pelo menos três crimes são apurados.
Os documentos teriam sido furtados — um do cartório de Rio Grande, e outro do Museu de Arroio Grande, ambos municípios do Sul, em 2012, de acordo com o Gaeco. Há ainda outros dois documentos vendidos para compradores de Minas Gerais, cuja origem será investigada. A autenticidade dos documentos foi comprovada preliminarmente por técnicos do Arquivo Público do RS.
Durante a operação, também foram apreendidos três volumes adicionais de documentos públicos das décadas de 1860 e 1870 em um sebo localizado em Porto Alegre. Nestes exemplares haveria um registro de emancipação de escravizados e dois documentos relacionados às exportações do porto de Rio Grande no mesmo período.
Documentos eram oferecidos por R$ 10 mil
A investigação teve início em 14 de abril, quando os dois investigados publicaram em suas redes sociais imagens de dois documentos que, segundo eles, teriam sido resgatados de um incêndio em cartório.
O conteúdo revelava registros do regime escravocrata na época em que a cidade de Rio Grande era uma província. A publicação chamou a atenção da equipe técnica do Arquivo Público do RS, que identificou os documentos como de provável origem pública.
A Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão do Estado foi acionada, e a 1ª Promotoria Cível de Rio Grande, deu início à apuração. A partir da confirmação de indícios de veracidade e da possibilidade de comercialização dos documentos, foi solicitado apoio do Gaeco, que obteve dois mandados de busca e apreensão para os endereços dos irmãos, em Capão da Canoa. Um dos investigados chegou a oferecer os documentos por R$ 10 mil.

Que documentos são?
Os documentos do século 19 teriam sido produzidos por órgãos do governo imperial. Os registros recuperados são de 1857 e 1859. Um deles detalha óbitos de pessoas escravizadas; o outro descreve penas e castigos aplicados à população escravizada na época.
Em um trecho de um dos documentos que pode ser lido a partir das imagens divulgadas pelo MPRS, é possível ver um registro de 1857, escrito em português antigo e em letra cursiva, onde identifica-se um homem escravizado de nome Thomas, natural do Rio de Janeiro, com idade de 36 anos "mais ou menos".
O documento o descreve como "escravo de José Luis da Silva", menciona sua cor e sua ocupação como charqueador, além de indicar que era solteiro e não sabia ler nem escrever.
De acordo com o MPRS estes documentos são registros públicos, fundamentais para a pesquisa genealógica, estudos históricos e pra a preservação da memória coletiva do país.
Posse de documentos públicos é crime?
Conforme a Lei Federal 8.159/91 é dever do Poder Público zelar pela guarda de documentos públicos. Segundo o MPRS, há outros crimes investigados no caso: distribuição ou ocultação de documentos, danos a bens protegidos e violação da Lei de Arquivos Públicos.
A manipulação inadequada dos documentos — feita sem o uso de luvas, por exemplo — foi um dos fatores que aceleraram a operação, já que o contato direto com a pele pode causar danos irreversíveis ao papel histórico. Também preocupa a ausência de informações sobre o armazenamento, o que pode comprometer ainda mais a conservação dos registros.
Os crimes em apuração incluem:
- Artigo 305 do Código Penal: destruição, supressão ou ocultação de documentos públicos;
- Artigo 62 da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998): destruição ou deterioração de bens protegidos por lei;
- Violação à Lei 8.159/1991, que estabelece a política nacional de arquivos públicos e privados.
A investigação continuará para identificar como os documentos foram retirados de instituições públicas e se houve outros crimes associados ao caso.
Próximas etapas
Com o resgate, os documentos serão encaminhados ao Arquivo Público do Estado para análise da autenticidade, avaliação do estado de conservação e aplicação de medidas de restauração. O objetivo é garantir sua integridade e disponibilização para acesso público, promovendo a preservação da memória histórica do país.
A instituição responsável pela guarda definitiva dos documentos será determinada após a análise.
* Produção: Camila Mendes