O impasse na liberação de licenças para a pesca da tainha em Santa Catarina escancara as dificuldades do setor e representa o ápice de uma crise que ganhou corpo há nove meses, mas que já se anunciava há anos. Desorientada pela extinção do Ministério da Pesca em outubro de 2015, a atividade pesqueira no Estado vê velhos fantasmas potencializando os problemas do presente: falta de representatividade política, desorganização interna e incapacidade técnica do governo federal para tratar de questões específicas da área. Soma-se ainda as consequências inevitáveis da Operação Enredados, que no ano passado desarticulou uma suposta organização criminosa que atuava no ministério e no Ibama.
É consenso que as dificuldades têm afetado a pesca como um todo e que em Santa Catarina os danos são maiores justamente por ficar aqui o maior polo pesqueiro do país. São 200 mil toneladas de pescado por ano (a maior parte de Itajaí, Navegantes e Porto Belo) e a responsabilidade por cerca de 25% do total de pescado brasileiro, conforme os dados mais atualizados do governo federal.
– Por o Estado ser o maior parque pesqueiro industrial nacional, o setor sofre de forma incontestável os efeitos que estes problemas estão causando. O prejuízo é para o industrial, armadores, despachantes, serviços de manutenção, construção naval, entre outros ramos relacionados à atividade pesqueira. Deixando de gerar empregos, alimentos saudáveis, renda e tributos, que hoje o país necessita – destaca o presidente do Sindicato dos Armadores e das Indústrias de Pesca de Itajaí e região (Sindipi), Jorge Neves.
Autoridades, especialistas e lideranças do setor concordam que situações pontuais do Estado contribuem para o cenário ser mais crítico aqui, mas todos apontam a falta de um organismo institucional bem organizado como peça-chave na busca por soluções.
– A pesca tem um ambiente legal complexo a seguir. Funcionaria se o governo federal, que é quem regulamenta a atividade, tivesse uma estrutura ágil para atender as demandas. Para fazer a burocracia ser positiva, ser parte da solução e não do aumento do problema – avalia o secretário adjunto da Agricultura e Pesca de SC, Airton Spies.
Para o pesquisador Paulo Ricardo Schwingel, do Grupo de Estudos Pesqueiros da Univali (GEP), além de agilidade e estrutura, são urgentes o preparo e a capacitação de quem vai lidar com um assunto tão cheio de peculiaridades:
– Em uma produção agrícola ou pecuária, se controlam todas as variáveis: espaço, alimentação, vacina. Na pesca, necessita um tratamento com muita atenção porque a gente tem que esperar a natureza fazer tudo e ela pode mudar as condições de um ano para o outro.
Região polo tem pouca representatividade política
Em 25 de junho de 2009, o então presidente Lula assinou em Itajaí o decreto que criou o Ministério da Pesca. Podia-se imaginar que ali o setor vivia o ápice de força no cenário nacional e que SC ia reforçar a imagem de referência brasileira com o primeiro ministro nomeado para a pasta. Sete anos depois, porém, a pasta não existe mais e a relevância política do maior polo pesqueiro do Brasil continua longe de ser significativa.
– O setor pesqueiro poderia eleger um deputado federal. Itajaí sozinha poderia eleger um deputado federal, mas não consegue. A bancada ruralista na Câmara dos Deputados tem 150 parlamentares, enquanto a pesqueira não chega a meia dúzia e nem tem a pesca como prioridade absoluta. A pesca tem peso econômico ainda pequeno na economia nacional, um peso político insignificante e não consegue se unir para mudar isso – diz o ex-ministro da Pesca e candidato a deputado federal em 2014, Altemir Gregolin.
Se no Congresso o destaque é pequeno, na Esplanada dos Ministérios a influência já foi maior. Criada em 2003, a Secretaria da Pesca foi comandada pelo catarinense José Fritsch até 2006. Naquele ano o petista passou o bastão para outro conterrâneo, Altemir Gregolin, que estava à frente da pasta quando ela se tornou ministério, em 2009, e permaneceu no cargo até dezembro de 2010. Entre janeiro e junho de 2011 foi a vez de Ideli Salvatti exercer a função, naquela que foi a última vez que um catarinense comandou o ministério. O atual secretário nacional da Pesca é Samir Pinheiro, do Acre.
Extinção de ministério deixou setor "órfão"
Extinto em outubro de 2015, durante reforma ministerial da presidente Dilma Rousseff para enxugar a máquina pública, o Ministério da Pesca deixou o setor órfão. Menos pelo fato de existir ou não um órgão com status de ministério _ embora isso garantisse verba maior e mais pessoal trabalhando nas demandas em Brasília _ e mais pelo desmonte completo que houve na área.
– Está tudo desorganizado, jogaram a pesca na agricultura mas não estavam preparados para isso. Tem pouquíssima gente lá dentro que conhece o setor. Não tem conhecimento, não tem gente, tem documento emitido sem ninguém pra assinar a liberação final. Nasci na pesca, mas nunca vi uma situação como essa e não sei onde vamos parar – lamenta o presidente do Conselho Nacional da Pesca (Conepe), Alexandre Spongeiro.
Pesquisas, estudos, levantamentos e cadastramentos sobre a pesca, que são reivindicações antigas do segmento, também continuam relegadas a segundo plano, conforme lideranças pesqueiras.
– É preciso estruturar superintendências estaduais, acabar com os "chutes" e fazer monitoramento e estatística pra saber a situação real da pesca. Estamos desamparados – desabafa o presidente da Federação dos Pescadores de SC (Fepesc), Ivo da Silva.
O secretário da Pesca e Aquicultura de Itajaí, Agostinho Peruzzo, pondera que diálogo até existe, mas que na prática os pedidos não são atendidos. Seja por desconhecimento, seja por falta de estrutura:
– Precisamos de um órgão que atenda nossas demandas. Ninguém nasce sabendo e ninguém aprende de pesca em cinco dias. Nós temos aqui o maior polo pesqueiro do país e estamos dispostos a colaborar com qualquer pessoa de qualquer governo.
Enredados: complicação em um cenário já conturbado
Enquanto a extinção do Ministério da Pesca caía como uma bomba no setor pesqueiro, sequer houve tempo de respirar. Menos de duas semanas depois, a Operação Enredados da Polícia Federal complicou de vez o cenário já incerto e conturbado. A investigação desarticulou uma suposta organização criminosa que atuava no ministério e no Ibama e tinha impacto direto no Sindipi, o maior sindicato de armadores do Brasil, que teve o então presidente Giovani Monteiro preso por quase cinco meses.
O ex-dirigente da pesca de Itajaí era supostamente o principal mentor de um esquema que fraudava e concedia licenças irregulares para pesca industrial na região, indiciado pela prática de mais de 20 crimes pelo Ministério Público Federal. Segundo o advogado dele, as provas obtidas pela PF não confirmam essa posição.
Quase nove meses depois da operação, a análise é de que a ação teve razoável efeito político, arranhando a imagem da pesca catarinense por ter recaído sobre nomes de peso na área. Porém, o maior reflexo foi mesmo o prático: com muitas licenças legais entre o total apreendido pela PF até que tudo fosse averiguado e o desmantelamento do ministério na mesma época, a burocracia dobrou.
– A operação foi algo normal, a PF tinha que apurar e fez isso. Impactou no aspecto de liberações para quem não tinha nada a ver com as irregularidades. Com a intervenção da Enredados e a retenção de documentos, SC ficou meses sem receber a subvenção do óleo diesel e foi prejudicada nas licenças da pesca industrial da tainha – destaca o secretário adjunto da Agricultura e Pesca do Estado, Airton Spies.
Desorganização e falhas internas pesam na crise
Um setor organizado e bem estruturado internamente poderia minimizar ou até evitar que outras situações afetassem tanto o desenvolvimento da pesca, mas esse aspecto também é problemático na visão de algumas lideranças.
Para o ex-secretário nacional da Pesca, José Fritsch, a Operação Enredados, a falta de representatividade política e a desvalorização no cenário nacional são reflexo da desunião histórica da pesca no Estado e também no país.
– Tem vários barcos de pesca que não foram habilitados porque não cumpriram todas as normas. São situações que servem de lição para o setor, que tem que se organizar melhor e cumprir as regras. Temos sindicatos, colônias e entidades importantes, mas têm de ir organizadas para o governo. Aí ganha força política, aparecem deputados que mesmo não sendo da região se interessam pelo resultado econômico. Chega-se a resultados muito melhores como um todo – analisa.
Novo coordenador do Fórum Parlamentar Catarinense, o senador Dalírio Beber (PSDB) tem trabalhado junto ao governo federal para resolver os problemas imediatos da pesca com as licenças. Ainda sem avanços para uma solução definitiva, ele também defende a mobilização conjunta das várias atividades ligadas ao segmento pesqueiro.
– Apesar de termos tido a pesca como ministério durante anos, não evoluímos. Tem que interagir com a universidade, com o governo, com as entidades. Criar normativas duradouras para as licenças, sistemas mais transparentes e informatizados. Tudo isso é fruto da desorganização da própria pesca – comenta