Deitada em uma cama de hospital há quase duas semanas, Rafaela Cruz Perrone ainda enfrenta as fortes dores que sente no corpo devido às fraturas e hematomas provocados pelo atropelamento que sofreu junto com o namorado, Thomaz Coletti, na madrugada do dia 2 de abril, no Parcão. O casal foi atingido por um Peugeot, que estava estacionado na calçada, depois da colisão entre um Audi e um Táxi, na esquina da Rua 24 de Outubro com a Avenida Goethe, no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre.
O alívio só vem com o carinho que tem recebido da família e o conforto de um quarto decorado com balões, flores e fotos na cabeceira. A energia positiva em torno de sua plena recuperação, demonstrada também por amigos nas redes sociais, faz com que ela volte a sorrir e anseie por uma vida normal, que quase foi interrompida, aos 24 anos.
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Em uma cômoda, ao lado das flores, o trecho de uma música, do grupo de rap Racionais MC's, traduz o espírito de esperança que ronda o quarto de Rafaela: "É necessário sempre acreditar que o sonho é possível, que o céu é o limite e que você, truta, é imbatível".
Agora, acredita que o mais importante é superar os traumas físicos e psicológicos. Por enquanto, ainda não há previsão de alta.
Nesta sexta-feira, o delegado Carlo Butarelli, responsável pelas investigações, espera concluir o inquérito policial. O motorista do Audi, Thiago Brentano, deve ser indiciado por duas tentativas de homicídio qualificado.
Entrevista
O que você lembra daquela noite?
Lembro que escutei um barulho muito forte. Olhei em volta e percebi um carro vindo muito rápido. A minha impressão é que ele (o motorista) acelerou ainda mais na esquina. Foi um momento de muita tensão porque vi que estava descendo um táxi e um outro carro. Estávamos assistindo a uma cena muito trágica. É muito assustador um carro vindo em altíssima velocidade na tua frente. Dois ou três segundos depois já senti uma pancada. Tenho a nítida impressão de que o para-choque veio na minha cara. Lembro de rolar muito no chão, gritar muito. Fiquei muito apavorada porque tinha assistido ao acidente e, nessa hora, me dei conta que era comigo. Comecei a gritar para o Thomaz e ele não me respondia. Fiquei muito assustada porque, para mim, ele tinha morrido.
Como você está se sentindo? Que tipo de ferimentos teve?
Tive diversas fraturas no rosto, onde mais me machuquei, justamente pelo impacto da colisão. A minha impressão foi de que o carro atingiu meu rosto e voei muitos metros. Os machucados maiores foram na testa. Tenho uma fratura no nariz e perto do olho, que estava pressionando meu olho esquerdo. Tive perda de sensibilidade nas pernas, que está voltando aos poucos. Graças a Deus não foi nada. Os médicos acreditavam que poderia ser uma inflamação de medula, algo mais grave, e, talvez, não tivesse como voltar a andar. Tive fratura no joelho direito e rompi dois ligamentos. E também diversos hematomas e escoriações.
Como foi sua reação ao rever as imagens?
Acho muito engraçado que uma pessoa cause um acidente e só admita isso depois que tem um vídeo comprovando que foi ela quem causou e que, mais do que isso, cause o acidente e, o mais chocante, não tenha um pingo de humanidade. Quer dizer: bate em um táxi, bate em um carro, o carro atinge outras pessoas, tem um amigo ferido contigo e tu vais embora? O táxi precisava de socorro, poderia haver pessoas dentro do Peugeot, a pessoa poderia ter acabado de entrar ou estar saindo do carro e tu não prestas nenhum socorro? Isso me choca, sabe? Jamais teria uma reação dessas. Jamais deixaria um desconhecido ou amigas minhas para trás para fugir de algo que causei porque estou com medo de ser pego por outras infrações que já cometi. É um enredo muito absurdo. Claro que me comove muito, as imagens são chocantes, tenho a lembrança de tudo. Rever isso é forte. Muito forte. Foram momentos que passei de pânico enorme, de ver meus pais completamente nervosos, que são pessoas que a gente não imagina perdendo a cabeça. Estou muito abalada. Não consigo dormir de noite. A dor nem é o que mais me incomoda, o que mais me machuca é lembrar de tudo o que aconteceu, porque foi muito traumático. Falei para meus pais que até tenho medo do dia que sair daqui. Nunca tive medo de andar na rua, de fazer nada. Sempre fiz tudo o que quis. Sem medo. Como vou voltar a sair na rua, ouvir um barulho e não achar que alguma coisa vai acontecer comigo? Acho que estar viva é um detalhe diante de tudo o que aconteceu. A gente poderia ter morrido. Não sei se vou conseguir ficar calma na rua e me sentir segura como sempre.
E se o motorista do Audi a procurasse, o que teria a dizer a ele?
É bem difícil. Não sou uma pessoa rancorosa. Mas não acho justo estar passando por tudo o que estou passando, meus pais, o Thomaz… Acho que ele precisa ter consciência das coisas que faz. Admitir, assumir. Precisa ter coração. Uma pessoa que faz o que ele fez não teve educação, não tem coração. Pelo que percebi, ele já teve várias chances e seguia tendo essa atitude em relação à direção. Precisa ter uma punição. A lei precisa acontecer para que outras pessoas não sofram o que estou sofrendo ou até pior. E para servir de exemplo para tantas outras pessoas que agem como ele. Sei que existe racha, sei que as pessoas saem, tomam um porre e pegam carro. Mas nada acontece com elas. Ninguém deixa de fazer. Para mim, não foi acidente. Me recuso a falar disso como acidente, porque não foi. A minha impressão é que ele estava a uns 150 km/h. Nunca estive em um carro que estivesse naquela velocidade. Todos esses fatos me mostram que ele é uma pessoa que não dá valor à vida. Mas eu dou, sabe? E sei que muitas pessoas também dão. Então, não é justo que pessoas como ele tirem a vida de outras, estraguem a vida de pessoas por uma adrenalina ou seja lá o que for. Não consigo entender. Gosta de correr, vai para o Velopark, sabe?
Como você imagina que será sua vida a partir de agora?
Espero que não fique com esse trauma. Isso é o que mais me assusta. Ter medo de viver, que é uma coisa que nunca tive. Não é bom estar aqui no hospital, estou há duas semanas presa. Quero poder retomar minha vida normal, voltar para a minha faculdade, para as minhas atividades. O que mais me assusta é não conseguir tirar esse trauma psicológico. Os ferimentos com o tempo eu vou conseguir reparar. O que mais me adoece é pensar que vá ficar psicologicamente abalada por muito tempo porque é horrível viver com medo. É um trauma muito grande pensar que alguém atentou contra a minha vida e está solto. Como faço? Como sigo vivendo como vivia, sem medo?