É difícil ser o bombeiro em meio a lutas entre incendiários, e é um pouco isso o que o escritor israelense David Grossman, 62 anos, vem sendo há mais de três décadas. Mesmo nos períodos de maior radicalização no conflito entre Israel e Palestina, Grossman tem sido uma voz firme no apelo ao diálogo.
– Insisto na paz porque não vejo nenhuma outra realidade que permita a nós e aos palestinos vivermos uma vida normal – diz.
Grossman tem militado pela paz não apenas em discursos recorrentes, mas também na construção de uma obra literária humanista e delicada. Dez de seus livros já foram publicados no Brasil pela Companhia das Letras (como Duelo, Ver: Amor, A Mulher Foge e Fora do Tempo), a maioria deles narrativas em que crianças ou adolescentes aprendem sobre a vida ao crescer entre duas memórias esmagadoras: a do Holocausto, vivido pela geração mais velha, e a dos constantes conflitos armados de Israel contra seus vizinhos. Grossman perdeu um de seus filhos, Uri, em 2006, em um desses conflitos, mas não mudou de opinião sobre a necessidade da paz. Durante a conversa por telefone, falou das tensões na região, do boicote a Israel conclamado por alguns artistas e intelectuais e de sua escolha por narradores que representam a inocência e o prazer da descoberta.
Grossman é o convidado especial do evento que vai comemorar os 10 anos do ciclo Fronteiras do Pensamento. Em uma parceria com a Feira do Livro de Porto Alegre e a Braskem, a conferência do escritor será realizada no dia 30 de outubro, com entrada franca, dentro da programação da Feira.
A temporada 2016 do Fronteiras terá sua programação divulgada na quarta-feira, dia 23, e a venda do pacote de ingressos para as oito conferências inicia-se em 28 de março. Informações e vendas em fronteiras.com.
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Qual é o alcance social da atividade de um escritor em Israel e no Oriente Médio, dada a atual situação dos conflitos na região?
Penso que um escritor tem só uma função, a de contar uma boa história. Nem todos os escritores em Israel estão tratando da assim chamada situação do país. A "situação” é uma espécie de eufemismo para um banho de sangue em curso há mais de um século, mas normalmente condescendemos com a palavra “situação”. Como eu dizia, o único papel de um escritor é escrever boas histórias, e há alguns que, por natureza, estão de algum modo mais expostos à situação, e da mesma forma como quero entender as pessoas que conheço, quero também entender o mecanismo, a dinâmica do conflito, e as consequências, o impacto que ele tem nas pessoas comuns. E como esse conflito muda os seres humanos, como afeta até suas vidas interiores, sua habilidade para amar ou para confiar. E como eles se sentem a respeito da opção de não ter um futuro. É isso que tento fazer. Sempre escrevo não sobre o grande cenário, sobre a situação como um todo, e sim sobre como ela se reflete na vida de pessoas comuns presas nesta tragédia do conflito no Oriente Médio.
E o que um escritor pode fazer de fato numa situação como essa?
Após escolher escrever sobre tal situação, penso que a melhor coisa com que podemos contribuir é com a habilidade do escritor – e é isso que faz de um ser humano comum um escritor – de experimentar a realidade de um ponto de vista diferente. Ser capaz de olhar para o conflito entre nós e os palestinos também pelo ponto de vista dos palestinos, ver como se sentem sob a ocupação israelense, como o desespero e a frustração os transformam, o que acontece com uma sociedade ocupada, não apenas por Israel, mas antes pelos jordanianos, pelos egípcios, pelos turcos, pelos britânicos. Como isso afeta essa sociedade, e como o desespero a domina. Todas essas coisas são dimensões fascinantes da realidade, então é difícil não tratar delas. Mesmo que às vezes eu realmente quisesse viver em um lugar mais pacífico e ser capaz de escrever apenas sobre coisas normais e comuns, como amor, sexo, ciúmes, fraternidade, paternidade.
A maioria dos seus livros é narrada sob o ponto de vista de uma criança ou de um adolescente em transição para a vida adulta. A ideia é retratar o cenário complexo de seu país por um ponto de vista em que a curiosidade e a inocência ainda estão frescas e são possíveis?
Acho que eu provavelmente teria escrito sobre a infância mesmo que fosse um escritor chinês, italiano ou brasileiro, porque ser criança foi, para mim, como imagino foi para todo mundo, um período fascinante da minha vida. As crianças são tão transparentes. É encantador ver como tentam decodificar a família ou a sociedade ou a linguagem, porque ainda têm uma linguagem limitada, e como ainda assim exploram tudo o que ouvem e veem para expressar o que querem e todas as impressões frescas com as quais são inundadas pela realidade. E elas têm de fazer tudo isso através de um veículo restrito, o da linguagem, e como vão se familiarizando gradualmente com todas as regras da natureza, dos seres humanos, da sociedade, e como aprendem sobre vida e morte, a finalidade e a totalidade delas. E a maneira como percebem seus medos, como mudam ao longo dos anos, como as crianças se acostumam com a ideia de que têm um corpo. Tenho duas netas, e uma delas agora está com quase um ano. Uns seis meses atrás, ela estava deitada na cama, com sua flexibilidade de bebê tentava morder o próprio dedão do pé, e, quando conseguiu, fechou o círculo de um entendimento: estava mordendo a si mesma, era ela quem estava mordendo o próprio pé. Nesse momento, era possível ver que um mundo se abria em sua mente. Então, quando se é criança, cada instante é de uma revelação. Sou fascinado pela energia dessa descoberta, do crescimento, da abertura para o mundo. E também, claro, me lembro da infância como um período bastante solitário. As pessoas não te compreendem de fato, não entendem o que está acontecendo com você, e porque estão absorvidas pelo seu modo adulto de pensar, há uma tensão constante entre a comunidade dos adultos e a comunidade das crianças. Os adultos querem que as crianças amadureçam muito rápido e de uma forma muito eficiente. Nós dizemos às crianças: “Pare de ser infantil, se apresse, deixe de ser avoado”. Os melhores momentos de minha infância foram quando eu pude ficar quieto devaneando.
O senhor foi uma criança sonhadora?
Eu fui uma criança sonhadora, mas também muito prática. O que é bonito na infância é que você pode facilmente escolher caminhos diferentes, e às vezes ser muito sonhador, como se flutuasse no ar, e no momento seguinte ser muito prático e ficar incomodado com sua refeição porque o omelete está encostando no tomate. As duas coisas coexistem numa criança até que, em certo ponto de nossas vidas, nos solidificamos e adquirimos o que chamamos de “caráter”. O caráter de uma criança é formado por todas as combinações dos possíveis temperamentos que ela poderá ter. Ela não terá todos, infelizmente, a partir de uma certa idade congelamos, nos tornamos um único personagem, e acho que um dos prazeres da escrita é que se pode derreter esse congelamento e podemos novamente tocar aquelas outras possibilidades de nós mesmos que ficaram para trás.
Alguns escritores escolhem o ponto de vista de uma criança porque, ao mesmo tempo em que ela é mantida fora dos assuntos dos adultos, ela percebe e às vezes toma contato com coisas que não deveria saber ou que tentam esconder dela. É algo que o senhor pensa ao escolher tais pontos de vista? Poder jogar com o que seu próprio personagem sabe ou percebe?
É uma pergunta muito boa. Acho que sim, quando eu escrevo sobre crianças, parte do prazer é a gradual exposição da criança a uma realidade que ela não conhece, o que permite a mim como escritor e permite também aos próprios leitores, quando leem, relembrar como eram as coisas quando começamos a decifrar o código da realidade à nossa volta, e como fomos expostos a todas as formas de brutalidades e atrocidades, e olhar para elas do ponto de vista de uma criança é ainda mais doloroso, e subitamente entender como era quando não havíamos ainda nos acostumado à brutalidade e à atrocidade. Por exemplo, escrevi um livro sobre a Shoah, o Holocausto, chamado Ver: Amor. E nesse livro há um menino de oito anos, seu nome é Momik, uma criança israelense morando em Jerusalém, cujos pais são sobreviventes do Holocausto, como muitos adultos na época de minha infância. E Momik está aterrorizado, porque entende que apenas poucos anos antes de ele nascer houve uma grande e terrível catástrofe humana, ele não entende bem o que é, mas sabe que aconteceu algo tão terrível que a maioria dos adultos não quer nem falar disso. E ele é assombrado por esse silêncio, como eu também fui quando criança.
Por quê?
Porque, sob esse silêncio, há tantas coisas que podem se esconder, e eu sabia que a geração dos meus pais e dos meus avós havia experimentado algo que não tinham palavras para descrever. Havia sonhos, pesadelos e gritos. E você tinha de descobrir o que aconteceu por meio de fragmentos retirados da realidade, gritos que se ouviam à noite na minha vizinhança, ou as muitas pessoas com números tatuados no braço. Eu não sabia que aqueles números eram tatuagens feitas pelos nazistas, eu pensava que eram uma espécie de código militar, acreditava que, se dissesse os números na ordem correta, aquela pessoa quebrada na minha frente iria se abrir, falar e algo novo apareceria. E Ver: Amor é todo sobre essa necessidade de entender. Ainda me lembro vividamente de quando meu filho mais velho, Yonathan, com três anos de idade, voltou do jardim de infância onde havia pela primeira vez ouvido falar do Holocausto. E ele estava tão chocado que queria saber mais e mais sobre o que havia acontecido, por que aquelas pessoas haviam feito aquilo, como haviam feito, como sabiam quem era judeu, e eu pensei que se contasse a ele as coisas que haviam acontecido, as coisas que as pessoas são capazes de fazer umas às outras, ele não seria mais a mesma criança, ele estaria conspurcado e talvez nem seria mais uma criança.
O senhor tem conclamado à paz tanto no entendimento do outro, expresso em seu livros, quanto em suas declarações públicas. É um desafio usar as palavras para pedir paz quando há tantos que as usam para manter o conflito, com declarações provocativas de parte a parte ou slogans e gritos de guerra?
Eu sou um ativista pela paz há alguns anos, e há aqueles que são pela desocupação e outros pela solução dos dois Estados, um na Palestina e um em Israel. E minha posição entre esses é bastante marginalizada e fortemente atacada. Há poucas semanas soubemos que uma organização de extrema direita havia preparado uma espécie de lista negra na qual meu nome e o de Amos Oz apareciam como agentes de potências estrangeiras colocados como espiões em Israel e outras coisas terríveis que eu sequer penso em dignificar com uma resposta. O clima é tal hoje em Israel que apenas usar a palavra “paz” é visto como uma atitude de extrema-esquerda. Qualquer um que fale em paz com os palestinos tem sido considerado pela maioria como uma combinação entre um traidor e uma pessoa muito ingênua. Claro que eu não sou nenhum dos dois. Eu insisto na paz porque não vejo nenhuma outra realidade que permita a nós e aos palestinos vivermos uma vida normal.
Mas a paz, nas atuais circunstâncias, é viável no Oriente Médio?
A paz é um objetivo muito difícil de se atingir, porque os dois povos, em sua maioria, estão tão distorcidos por mais de um século de guerras, violência e suspeitas que é difícil para ambos começarem a confiar um no outro. Ou começar a falar o vocabulário da paz. É mais fácil estarmos envolvidos em guerra e violência, somos todos especialistas em guerra e violência. Mas é claro que isso vai gerar cada vez mais destruição, e não vai nos permitir o gosto pela vida, não vai nos permitir um futuro. Então, tento o melhor que posso comunicar a meus compatriotas israelenses o que significa ter paz, porque eles nem mesmo conhecem essa opção. Nenhum de nós experimentou um único dia de paz até hoje. Tivemos um acordo de paz com a Jordânia, com o Egito, mas são momentos de paz estéril, uma situação temporária de não guerra. Falo de paz real, da dimensão real da paz, de viver a vida de um modo mais confiante, ser capaz de respirar com os dois pulmões, porque atualmente respiramos com apenas um, o da sobrevivência, não mais do que isso. Sobreviver de uma catástrofe a outra não é o bastante, porque não importa o quão forte seja o seu exército, em algum momento você será derrotado por um exército mais forte que o surpreenda. Acho que precisamos sim de um exército forte, é algo que considero importante dizer. No Oriente Médio, é preciso ser muito forte, porque a região nunca internalizou de verdade o direito dos israelenses de estar aqui, e precisamos estar alertas o tempo todo, mas se você se ampara apenas no exército, que Deus nos proteja de sermos derrotados. Eu não quero essa derrota, porque Israel pode ser um lugar importante, de muitas maneiras, e as realizações de Israel são magníficas, em quase todos os campos da vida. Então quero que Israel continue aqui, mas você só vai conseguir isso se basear-se ao mesmo tempo em poder militar e em ter uma relação boa e normal com seus vizinhos, que gradualmente evoluiria para a paz.
Seu amigo Amos Oz teve lançado aqui no Brasil recentemente um livro chamado Como Curar um Fanático, no qual defende a ideia de dois Estados na região, um para israelenses e outro para os palestinos. Há aqueles que clamam por um único Estado binacional. Ambas as propostas soam utópicas atualmente. Qual seria o melhor modelo, em sua opinião?
Sim, se torna cada vez mais difícil atingir algo assim, não porque há algum decreto divino, mas porque há pessoas fanáticas em ambos os lados que fazem tudo o que podem para sabotar a solução dos dois Estados. E quando ela falha, de repente dizem: “Oh, ok, deveríamos ter um único Estado binacional”. Gosto da ideia de um Estado binacional, mas acho que não convém aos dois povos, porque exigiria uma maturidade política real, uma ideia profunda de democracia e de tolerância, o que não temos no momento. São povos moldados por um século de ódio mútuo e suspeitas. Como se pode imaginar que estarão aptos a viver uma vida normal em uma única entidade política? Não vai acontecer. Veja a Bélgica, que é um país muito mais maduro politicamente. Nos últimos 200 anos, não houve uma única gota de sangue derramado por questões políticas lá, e ainda assim crescem os clamores de separação de Flandres da Valônia, e eles odeiam estar juntos. Então, como esperar que nós e os palestinos funcionemos de uma maneira normal e produtiva em um único Estado? Não estou dizendo, com isso, que a solução dos dois Estados será atingida, mas se não for, nos veremos em uma situação realmente terrível, porque não teremos um Estado binacional, e sim um regime de apartheid conduzido por Israel. Não digo que seja uma situação irreversível, porque nada na História é de fato irreversível, mas seria intolerável para as duas partes envolvidas.
O que o senhor pensa do movimento que tem clamado por um boicote a Israel, a seus produtos, às suas pesquisas e a seus intercâmbios acadêmicos, e que tem apoio até mesmo de uma parte dos intelectuais do país?
Basicamente, eu sou um adepto do diálogo, e não quero boicotar ou ser boicotado. Boicote a Israel como um todo equivale a boicotar quase metade da população que está inclinada a fazer concessões e superar seus medos para encontrar uma solução com os palestinos. Olho para a efetividade desse boicote e sei o que ele vai fazer: vai empurrar mais e mais israelenses do centro para a direita e encurralá-los no canto de nossa identidade coletiva, que é um lugar muito perigoso, é o canto dos alienados, dos que se consideram caçados e perseguidos por todo mundo. É um canto muito ruim e duro e agressivo para estarmos, e não consigo ver a produtividade disso. Devo dizer também que há muita hipocrisia no boicote a Israel. Eu ficaria mais tranquilo ao ouvir, por exemplo, que um boicote semelhante está sendo organizado à Rússia, que tem bombardeado escolas e hospitais na Síria. Então, não acho uma boa ideia. Acho que uma ideia melhor seria sobrecarregar os políticos de Israel e Palestina, fazer pressão para começar um verdadeiro diálogo entre nós. É a melhor coisa que podemos fazer, começar um diálogo direto. E ambos os lados, diga-se, se recusam a ter esse diálogo, e posso dizer pela minha última visita à Palestina que eles recusam qualquer sugestão de uma conversa com Israel, consideram uma trapaça. É esta a situação no momento, cada lado acha que o outro lado é trapaceiro, então precisamos de pessoas de fora que venham e possam mediar esse contato. Não vejo outra solução.