Partindo da costa angolana do outro lado do Atlântico, os navios negreiros aportavam aqui no gigantesco cais de pedra, entregando a carga humana aos "armazéns de engorda" da Rua do Valongo. Cronistas estrangeiros descreveram a perversidade no fervilhante mercado de escravos, incluindo as lojas que vendiam crianças africanas doentes e magras.
Os escravos recém-chegados que morriam antes de começarem a trabalhar arduamente nas minas brasileiras eram transportados para uma cova coletiva dos arredores, onde os corpos apodreciam em meio a pilhas de lixo. Enquanto as fazendas imperiais floresciam, coveiros do Cemitério dos Pretos Novos esmagavam os ossos dos mortos, abrindo espaço para milhares de novos cadáveres.
Agora, com equipes de construção virando o Rio de Janeiro do avesso no surto de construção que antecede a Copa do Mundo deste ano e as Olimpíadas de 2016, descobertas arqueológicas impressionantes ao redor dos locais em obras oferecem novos vislumbres da cidade como centro nervoso do comércio escravagista no Atlântico.
Porém, enquanto as construtoras trabalham a todo vapor ao redor do porto escravagista desenterrado - com projetos futuristas como o Museu do Amanhã, custando cerca de US$ 100 milhões e projetado com formato de peixe pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava -, a reestruturação frenética está motivando um debate questionando se o Rio está negligenciando o passado na pressa de construir o futuro.
- Nós estamos encontrando sítios arqueológicos de importância global e provavelmente muito mais extensos do que foi escavado até agora, no entanto, em vez de priorizar essas descobertas, nossos líderes prosseguem com sua reconstrução grotesca do Rio, afirmou Sonia Rabello, jurista eminente e ex-vereadora.
A Prefeitura colocou placas nas ruínas do porto dos escravos e um mapa de um circuito da herança africana, que os visitantes podem percorrer para ver onde funcionava o mercado de escravos. Ainda assim, estudiosos, ativistas e moradores do porto afirmam que essas medidas são tímidas demais em comparação aos projetos de vários bilhões de dólares em execução.
Além do Museu do Amanhã, menosprezado pelos críticos como um empreendimento caro que rouba a atenção da história complexa do Rio, as construtoras estão trabalhando em uma série de outros projetos chamativos, como um complexo de arranha-céus batizado em homenagem a Donald Trump e um condomínio fechado para os juízes dos Jogos Olímpicos.
Ao mesmo tempo, descendentes de escravos africanos que moram como invasores em prédios caindo aos pedaços ao redor do antigo porto escravagista estão se organizando para obter escrituras de suas casas, embora uma ordem franciscana da Igreja Católica afirme ser a dona das propriedades.
- Conhecemos os nossos direitos, disse Luiz Torres, 50 anos, professor de História e líder do movimento em prol das propriedades. Com as ruínas do mercado de escravos perto de sua casa como um testemunho, ele acrescenta: - Tudo que no Rio foi modelado pelas mãos dos negros.
Estudiosos dizem que a escala do tráfico negreiro era descomunal. O Brasil recebeu perto de 4,9 milhões de escravos, pela rota do Atlântico, enquanto a América do Norte importou aproximadamente 389 mil, segundo o Banco de Dados do Tráfico Negreiro Transatlântico, projeto da Universidade Emory, Atlanta.
Acredita-se que o Rio tenha importado mais escravos do que qualquer outra cidade das Américas, suplantando lugares como Charleston, Carolina do Sul, Kingston, Jamaica, e Salvador, no nordeste brasileiro. Ao todo, o Rio recebeu mais de 1,8 milhão de escravos negros, 21,5 por cento de todos os escravos trazidos para as Américas, disse Mariana P. Candido, historiadora da Universidade do Kansas.
Para os ativistas, as descobertas arqueológicas merecem pelo menos um museu e escavações bem maiores, citando projetos de outros lugares, como o Museu Internacional da Escravidão, em Liverpool, cidade portuária britânica, onde os navios negreiros eram preparados para as viagens, o Museu do Antigo Mercado de Escravos, em Charleston, e o Castelo Elmina, centro de comércio de escravos na costa de Gana.
- Os horrores cometidos aqui são uma mancha na nossa história, disse Tânia Andrade Lima, arqueóloga-chefe da escavação que encontrou o Valongo, construído logo depois que o príncipe regente de Portugal, Dom João VI, fugiu do Exército de Napoleão, em 1808, transferindo a sede do império de Lisboa para o Rio.
O cais sórdido funcionou até a década de 1840 quando as autoridades o enterraram sobre docas mais elegantemente projetadas para receber a nova imperadora do Brasil, vinda da Europa. Ambos os cais terminaram sendo enterrados por um aterro sanitário e um distrito portuário residencial, chamado Pequena África.
Muitos descendentes dos escravos se instalaram onde antes funcionava o mercado negreiro, com idiomas africanos sendo falados na área até no século XX. Embora o bairro esteja ganhando reconhecimento como berço do samba, uma das tradições musicais mais reverenciadas do país, ele foi negligenciado durante muito tempo pelas autoridades.
No Dia da Consciência Negra, observado anualmente no Brasil em 20 de novembro para refletir as injustiças da escravidão, Rabello, a jurista, comentou que o impetuoso prefeito do Rio, Eduardo Paes, que supervisiona a maior reforma da cidade em décadas, não participou de uma cerimônia no Valongo na qual os moradores deram início à campanha para que ele seja reconhecido como Patrimônio Mundial da Unesco.
Para complicar ainda mais o debate sobre como o passado do Rio deveria ser equilibrado em conjunto à reconstrução frenética da cidade, algumas famílias ainda moram sobre sítios arqueológicos, às vezes escavando o patrimônio brasileiro por conta própria.
- Quando eu vi os ossos, pensei que fossem o resultado medonho de um assassinato envolvendo antigos moradores, afirmou Ana de la Merced Guimarães, 56 anos, proprietária de uma pequena empresa de dedetização que mora em uma casa velha onde operários que reformavam a casa, em 1996, deram de cara com os restos mortais da cova coletiva.
Guimarães estava morando acima de um ponto de desova de escravos mortos, usado até meados da década de 1830. As estimativas variam, mas muitos estudiosos que aproximadamente 20 mil pessoas foram enterradas ali, incluindo muitas crianças.
Guimarães e o marido decidiram ficar na propriedade, abrindo uma pequena organização sem fins lucrativos no local, onde os visitantes podem ver parte da escavação arqueológica. As autoridades têm planos de construir um projeto de veículo leve sobre trilhos em sua rua, o que pode levar a muitas descobertas.
- Este foi um local de crimes indescritíveis contra a humanidade, mas também é onde moramos, disse Guimarães, reclamando que os órgãos públicos deram pouco apoio à sua organização.
O legado da escravidão é nítido no Brasil inteiro, onde mais da metade de seus 200 milhões de habitantes se definem como negros ou mulatos, dando à nação mais pessoas de origem africana do que qualquer outro país fora da África. No Rio, a grande maioria dos escravos veio do que hoje é Angola, afirmou Walter Hawthorne, historiador da Universidade Estadual do Michigan.
- O Rio era uma cidade africana culturalmente vibrante. Os alimentos que as pessoas comiam, a forma como rezavam, como se vestiam, entre outras características, foram em grande medida influenciadas pelas normas culturais angolanas, afirmou Hawthorne.
O Brasil aboliu a escravidão em 1888, tornando-se o último país das Américas a fazê-lo. Agora, a abordagem relativamente descontraída em relação às descobertas arqueológicas levanta dúvidas sobre a disposição das autoridades em revisitar tais aspectos da história brasileira.
- Os arqueólogos estão expondo as bases da nossa sociedade desigual enquanto testemunhamos uma tentativa perversa de transformar a cidade em algo que lembra Miami ou Dubai, assegurou Cláudio Lima Castro, arquiteto e urbanista. - Nós estamos perdendo uma oportunidade de nos concentrarmos em detalhes de nosso passado, e quem sabe até aprender com ele, completa.
Raridade
Sítios arqueológicos são descobertos em meio a obras no Rio de Janeiro
Surto de construção que antecede a Copa do Mundo deste ano e as Olimpíadas de 2016 gera descobertas arqueológicas ao redor dos locais em obras
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