A mente de Poliana Okimoto transitou entre o sonho e a realidade na noite seguinte à mais importante conquista da carreira. Cada vez que despertava do sono intranquilo no hotel onde a equipe de maratonas aquáticas estava hospedada no Rio de Janeiro, a experiente nadadora não sabia discernir se o bronze colocado no peito horas antes era de verdade. Pensava, por alguns instantes, que dormia mais uma vez embalada pelo desejo da medalha.
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O terceiro lugar na Olimpíada do Rio, garantido a duras braçadas nas águas de Copacabana, era real. Mas o que Poliana imaginou para sua vida de medalhista não passou do sonho. A nadadora sempre enxergou os integrantes do pódio como membros de um Olimpo imaginário em que o reconhecimento é obrigatório. Quando chegou sua vez, viu que não era bem assim.
No pós-Rio, ela paga do bolso o preparador físico e a nutricionista, já que o programa que remunerava sua equipe de apoio terminou. O dinheiro que vinha dos Correios, parceiro histórico da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos, cessou (recentemente, a estatal renovou o contrato com a CBDA por um terço do valor do ciclo passado). E os patrocínios, que Poliana esperava atrair após a conquista, não vieram. Seu exemplo mostra até que ponto vai a queda de investimentos no esporte brasileiro. Não poupa nem os que recém conquistaram ouros, pratas e bronzes.
Apesar dos cortes, a paulista de 33 anos celebra a continuidade do Bolsa Pódio, incentivo dado pelo governo federal a atletas que estão no topo da pirâmide de suas modalidades e que varia entre R$ 5 mil e R$ 15 mil mensais. Seu técnico e marido, Ricardo Cintra, relata que houve sinalizações recentes do Comitê Olímpico do Brasil (COB) e da CBDA de que ajudarão no preparo para Tóquio. Poliana lamenta, porém, a perda da equipe multidisciplinar que a acompanhava. Antes dos Jogos, gastava boa parte de sua remuneração com suplementos alimentares. Depois, teve de optar: ou investia nos profissionais, ou seguia com os suplementos:
- Não estou tomando mais nada. Estou indo só na base da alimentação, e a minha nutricionista teve de dar um jeito. É triste. A gente fica uma vida inteira pensando em ganhar uma medalha para não sofrer com isso. Quando consegue, as coisas, em vez de melhorarem, pioram.
ZH ouviu 16 atletas que participaram da Olimpíada em casa. Todos haviam contado com uma rede de apoio que inclui patrocinadores, bolsas governamentais e recursos de empresas estatais. Meses depois, veem essa rede corroída.
Juntos, os entrevistados somam oito medalhas olímpicas, 20 em campeonatos mundiais e nove títulos em Jogos Pan-Americanos. O currículo não impediu a perda de pelo menos 19 contratos de patrocínio. Quatro estão sem treinador ou tiveram de trocar de técnico porque não havia recurso para bancar sua permanência. Cinco revelaram à reportagem o percentual de sua remuneração que foi cortado: o número varia entre 30% e 90%. Dos 16 atletas, apenas três não tiveram mudança nos incentivos recebidos antes e depois dos Jogos. Os outros 13 sofreram algum tipo de corte.
A crise é cruel mesmo com quem se mantém no topo há muito tempo. Arthur Zanetti, ouro em 2012 e prata em 2016, teve redução de 90% em seus rendimentos desde que a Olimpíada do Rio terminou. Das sete empresas que o ajudavam, apenas uma ficou. A situação é agravada pela interrupção de sua Bolsa Pódio - Zanetti relata que seu contrato expirou e aguarda a abertura de inscrições para pedir renovação. A renda dos últimos meses foi garantida pela Força Aérea Brasileira, como parte do Programa Atletas de Alto Rendimento (PAAR) das Forças Armadas, que seleciona atletas e concede auxílios.
O baque no orçamento do dia a dia só não foi maior porque o ginasta é precavido. Consciente das vicissitudes do esporte brasileiro, guardou grana. Lembra que as turbulências financeiras são comuns logo após os Jogos Olímpicos, mas nada que se compare com o que tem ocorrido no Brasil.
- É complicado. Ainda bem que eu sabia que a situação deste ano não seria fácil. Se eu consegui ser duas vezes medalhista olímpico e estou passando por uma dificuldade para tentar renovar com patrocinadores, arranjar algum investimento, imagina quem não chegou lá ainda?
A pergunta de Zanetti pode ser endereçada a Marcus D'Almeida, do tiro com arco. O jovem de 19 anos, apontado como prodígio da modalidade pelos excelentes resultados no período de preparação para o Rio, sente na pele como é ser uma promessa de um esporte de pouca visibilidade no Brasil pós-olímpico.
Em 2014, Marcus surpreendeu ao sagrar-se vice-campeão da Copa do Mundo adulta, tornando-se o mais jovem finalista da história da competição. No mesmo ano, voltou com a prata dos Jogos Olímpicos da Juventude, disputados em Nanquim, na China. Chegou à Olimpíada com alguma chance de figurar no pódio, mas não teve bom desempenho. O mais importante era sua brilhante perspectiva de futuro. A questão é que um atleta no início da carreira precisa de continuidade de treinamentos e competições.
A seleção brasileira da modalidade, que treinava no Rio, foi desmantelada junto com a comissão técnica. Cada integrante retornou para seu clube de origem. Marcus voltou a treinar no Clube Arqueiros da Íris, em Maricá, no interior fluminense. Dos quatro patrocinadores que o ajudavam, sobrou só um. No fim do mês passado, pagou do próprio bolso para ir à Europa por um período de treinamentos, auxiliado pela verba do apoiador que restou e da Bolsa Pódio, que ainda recebe.
- Não foi nomeado até hoje um técnico da seleção principal. Preparador físico, nutricionista, isso tudo foi embora. É complicado dizer que eu sabia que isso ia acontecer. Não é bom para o esporte, de maneira alguma - lamenta.
A falta de treinador aflige também Felipe Wu, dono do primeiro pódio do Brasil nos Jogos ao ficar com a prata no tiro esportivo, treina sem supervisão na Hebraica, em São Paulo. Por falta de verba, o técnico colombiano Bernardo Tobar, que o acompanhou até o Rio, não ficou. A tendência é de que seja contratado para acompanhar o vice-campeão olímpico apenas nas provas do circuito.
- Treinar sozinho está longe de ser o ideal. O último ano mostrou a diferença de se ter um técnico ao lado em todos os treinos. O resultado é muito superior. É importante ter alguém analisando os treinamentos - afirma Wu.
APÓS O FIM DA OLIMPÍADA,
SELEÇÕES DESESTRUTURADAS
Em nome da renovação de treinadores e da economia de recursos que ela gera, as velejadoras gaúchas Ana Barbachan e Fernanda Oliveira ficaram sem o técnico Paulo Roberto Ribeiro, o Paulinho. Outro treinador da dupla, o espanhol Eneko Rodríguez, permanecerá para as competições disputadas na Europa. Logo após a Olimpíada, foi cortada a equipe de apoio com preparador físico e fisioterapeuta, mas, no fim do ano passado, veio a boa notícia de que os profissionais vão continuar. Há animação com o reconhecimento, por COB e Confederação, dos excelentes resultados em 2016, o que coloca as gaúchas em posição privilegiada para receber incentivos, mesmo que a campanha olímpica tenha sido frustrante - terminaram na oitava colocação.
A pior perda financeira das velejadoras é a verba que recebiam de Furnas, uma das patrocinadoras. Como não vinha de um contrato ligado à Lei de Incentivo ao Esporte (LIE), que dá vantagens fiscais a empresas que investem no esporte, o dinheiro podia ser usado para compras de materiais sem passar por demorados processos de licitação. Em 2015, no auge da luta por uma vaga olímpica, Ana e Fernanda se viram com um barco defasado em relação às rivais. Precisavam, com urgência, de uma nova embarcação, que foi adquirida com a verba do patrocínio.
Ainda que sejam tratadas com prioridade pela gestão da vela brasileira, as gaúchas perceberam a mudança de cenário em 2017, quando receberam o convite para participar da primeira etapa da Copa do Mundo, em Miami.
- Era um apoio parcial. Incluía passagens, inscrição, transporte do barco, entre outras coisas. Mas não tinha estadia e alimentação. Em 15 dias, isso é um dinheirão - diz Fernanda.
Os cortes sistemáticos atiram os atletas na incerteza, o que muitas vezes gera irritação. É o que se percebe ao conversar com Fernando Reis, número 5 do mundo no levantamento de peso e bicampeão dos Jogos Pan-Americanos. Sua raiva tem alvo: a Confederação Brasileira de sua modalidade.
Fernando alega que, por ser beneficiário do Bolsa Pódio, tinha direito a uma equipe multidisciplinar paga pelo Plano Brasil Medalhas, programa do governo federal que se encerrou com o fim dos Jogos. Segundo o atleta, os profissionais não foram contratados porque o presidente da entidade, Enrique Montero, não teve interesse em encaminhar os documentos para montar o time. Procurado pela reportagem, Montero afirmou que a equipe de Fernando foi contratada e enviou, por e-mail, documentos de encaminhamento datados de 2015 para admissão dos profissionais.
Versões conflitantes à parte, o halterofilista teve perdas significativas após os Jogos. Não tem recebido o Bolsa Pódio e também ficou sem verbas de patrocinadores e da Petrobras, que apoiava a CBLP.
- Eu tento ver a situação de uma maneira otimista. Corro atrás das minhas coisas, tenho meus negócios. Mas é mais desgastante. Você compete contra países em que os caras são profissionais, fazem tudo de maneira correta e resguardam os atletas. Aqui, a gente tem de bater o escanteio e ir para a área cabecear - reclama Fernando, que segura o orçamento sem dificuldades graças à academia que tem em São Paulo.
O pugilista Robenilson de Jesus complementou a renda, combalida pelos atrasos nos repasses do Bolsa Pódio, dando aulas como personal trainer em Salvador. Atleta olímpico em Londres e no Rio, voltou à capital baiana, onde nasceu, depois da campanha no Rio. Até a Olimpíada, era parte da equipe brasileira, concentrada em São Paulo com ampla estrutura para se preparar. Desde então, a seleção não se reuniu mais.
- Eu fico muito decepcionado porque o esporte, para um atleta de alto rendimento, é trabalho, e não lazer. É meu ganha-pão. Tenho de pagar condomínio, me locomover para treinar. O que me deu uma segurada foi a verba da Marinha (Robenilson é beneficiário do PAAR). Tenho um projeto social que eu parei de ajudar. Se ajudasse, não teria como me manter - diz o boxeador.
SECA DE PATROCÍNIOS,
FOCO NA PREPARAÇÃO
- A Disneylândia vai acabar.
Fernanda Oliveira ouviu a frase acima incontáveis vezes no ciclo pré-Rio. Havia, no ambiente esportivo brasileiro, a clara noção de que o forte apoio aos atletas era temporário. A previsibilidade dos cortes ajuda a entender como os esportistas têm reagido ao cenário de enxugamento de recursos.
Com exceção de uma ou outra manifestação mais exaltada, quem sofre com o novo status quo costuma vê-lo com naturalidade. A forma com que as campeãs olímpicas da vela Martine Grael e Kahena Kunze encaram o novo ciclo é um bom exemplo. Questionadas por e-mail se sua rede de apoios encolheu, negaram. Citaram, porém, que o contrato com um patrocinador encerrou e não foi renovado. Como já esperavam o fim da parceria, nem o registraram como uma perda.
Calejados, os mais experientes estão acostumados a conviver com turbulências no ano inicial de cada ciclo olímpico. A intensidade da tempestade aumentou, o que não significa que os marinheiros se assustem ao vê-la pelo caminho. Ajuda saber que alguns apoios permanecem, como bolsas governamentais e a Lei de Incentivo ao Esporte.
A psique do atleta, tão preparada para o enfrentamento de obstáculos, é outro fator importante para que a motivação não seja abalada no caminho até Tóquio-2020.
- O esporte nos ensina a lidar com frustrações e momentos ruins. Existem no dia a dia, nos treinamentos. Temos de continuar treinando, agindo, trabalhando, para não perder tempo. Essa é uma característica do esporte que o atleta acaba absorvendo - analisa Ana Barbachan. - A gente gosta do que faz. Ainda me sinto muito privilegiada por isso. Independentemente de um ou outro corte, não vou me queixar.
Sorridente no anúncio da renovação de seu contrato com a Sogipa por mais quatro anos, a judoca Mayra Aguiar, duas vezes medalhista de bronze em Olimpíadas, personificava a atitude positiva. É certo que tem situação privilegiada, escudada por um clube bem estruturado e auxílios governamentais e da iniciativa privada. Poderia, porém, lamentar que duas empresas que a patrocinavam até a Olimpíada partiram. Em vez disso, preferiu discorrer sobre o planejamento para chegar na ponta dos cascos em 2020.
A preparação também é o foco principal do nadador Henrique Rodrigues, campeão dos Jogos Pan-Americanos nos 200m medley:
- É lógico que nós dependemos da remuneração. Somos atletas profissionais. O corte de incentivos pesa para todos, mas não podemos perder o foco no objetivo principal, que agora é a Olimpíada de Tóquio. A gente faz tudo o que pode para ter o melhor resultado possível dentro da piscina. A parte administrativa acaba ficando com os dirigentes.
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