Um dos cartões-postais mais conhecidos do Brasil, Copacabana é o cenário olímpico que melhor traduz o espírito carioca. A majestosa orla de pouco mais de quatro quilômetros de extensão e o seu entorno – a Lagoa Rodrigo de Freitas e a Baía da Guanabara – serão palco das principais competições ao ar livre dos Jogos. Dificilmente um turista que estiver no Rio entre os dias 5 e 21 de agosto abrirá mão de passear pelo famoso calçadão de curvas onduladas contíguo à Avenida Atlântica.
Mas ao menos uma moradora de Copacabana optou por ir na contramão dos milhares de estrangeiros e brasileiros de outros Estados esperados no Rio. A mineira Kátia Abreu já está preparando as malas para deixar a cidade onde escolheu viver nos últimos 12 anos. Nas férias compulsórias impostas a toda a rede de ensino da cidade em agosto – uma medida decretada pela prefeitura para evitar o colapso no trânsito durante o evento–, a professora de inglês de 42 anos buscará refúgio na casa do pai em Belo Horizonte.
– Vai ser um caos na Olimpíada. A cidade vai ficar insuportável – prevê.
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Assim como cinco em cada 10 brasileiros ouvidos pelo instituto de pesquisa Datafolha nos dias 14 e 15 de julho, Kátia não está nada empolgada com os Jogos Olímpicos Rio 2016. Não se pode criticá-la por falta de espírito olímpico. Em 2002, a educadora esteve em Salt Lake City (EUA), para onde viajou com o objetivo de aprimorar o idioma e trabalhar como voluntária na cidade-sede dos Jogos de Inverno.
– Sou contra a Olimpíada no Rio. Gastaram muito dinheiro. Poderiam ter feito outros investimentos, há tanta coisa para melhorar na cidade – reclama Kátia.
O mau humor dos brasileiros em geral e dos cariocas em particular é um dos principais sintomas do momento turbulento do país. Em dois anos, a reprovação aos Jogos dobrou (era de 25% em junho de 2013, conforme o Datafolha), enquanto a aprovação recuou 24 pontos percentuais – há dois anos, 64% apoiavam a realização do evento. A mesma pesquisa de julho apontou outras evidências de pessimismo acentuado: para 63% dos entrevistados, a Olimpíada no Rio traz mais prejuízos do que benefícios para os brasileiros, e 57% acreditam que a segurança pública para proteger os turistas será mais motivo de vergonha do que de orgulho.
– Havia uma ideia de que a vida do brasileiro estaria bem melhor. É natural que as pessoas estejam pessimistas com a possibilidade de o Rio dar vexame na organização dos Jogos – diz o sociólogo Ronaldo Helal, coordenador do Laboratório de Estudos em Mídia e Esportes da Universidade Estadual do Rio (UERJ). – Mas acredito que vai dar tudo certo. (segue na página 9)
Embora o Palácio da Guanabara desempenhe um papel secundário na organização olímpica, a grave crise do Estado ampliou o desânimo da população. Em situação quase falimentar, o governo fluminense fracassou com um de seus principais programas vinculados aos Jogos: a despoluição da Baía da Guanabara. A meta de recuperação total das águas onde serão disputadas regatas da vela já havia sido abandonada no meio do caminho, mas nem a promessa de limpar 80% da baía foi cumprida.
Além de gerar queixas de atletas e federações, a sujeira das águas cariocas tem provocado abalos na imagem do país no Exterior. Há 10 dias, uma reportagem do jornal americano The Washington Post afirmou que a Olimpíada do Rio pode ser a mais poluída da história. De acordo com a publicação, a Lagoa de Jacarepaguá, um manancial de águas de tom esverdeado às margens do Parque Olímpico da Barra, é tão degradada que os peixes estão morrendo.
– Prefeitos e governadores no Brasil gostam de fazer lançamentos de obras que a população pode ver. Projetos de despoluição e dos sistemas de educação não são prioridades para eles – critica o geógrafo americano Christopher Gaffney.
Pesquisador do impacto de megaeventos, Gaffney morou no Brasil de 2009 a 2015, para estudar os preparativos e a realização da Copa do Mundo e da Olimpíada. Há poucos dias, desembarcou no Rio para assistir aos Jogos. Ele é um crítico do legado apresentado como sinônimo de sucesso.
– Do ponto de vista esportivo, o Rio está pronto para receber os Jogos. Mas o Rio não se preparou para ser uma cidade melhor a sua população. O projeto olímpico ampliou a desigualdade na cidade. E os Jogos são a síntese desse modelo de exclusão. A Olimpíada beneficiou somente aqueles que já são beneficiados, os mais ricos que vivem na Barra da Tijuca – diz Gaffney, citando investimentos imobiliários e em modais de transportes que favoreceriam apenas parte do povo.
Mas nem mesmo os privilegiados moradores das regiões mais valorizadas da cidade ficaram imunes a uma tradição brasileira: a inauguração de obras fora do prazo. Com investimento de R$ 9,7 bilhões, dos quais R$ 8,5 milhões provenientes dos cofres públicos, a expansão do metrô também atolou em meio ao descalabro das contas do governo estadual. Depois de sucessivos atrasos, a Linha 4 – que terá 16 quilômetros de trilhos entre a Barra e Ipanema – deverá ser aberta oficialmente nesta segunda-feira, apenas quatro dias antes do início da Olimpíada. Também houve demora na entrega de arenas. O caso mais grave foi o velódromo, aberto aos ciclistas só na última semana de junho, seis meses após o prazo. Por isso, foi cancelado o evento-teste da modalidade.
Nos últimos dias, a abertura da Vila dos Atletas causou constrangimento ao Comitê Rio 2016, que há três meses recebeu o conjunto de 31 prédios do consórcio responsável pela construção. Desgostosa com as más condições dos apartamentos – houve queixas de vazamentos, fios expostos, vasos entupidos –, a delegação da Austrália se negou a ocupar os imóveis. Declarações irônicas do prefeito do Rio, Eduardo Paes, geraram uma crise diplomática. No último domingo, Paes disse que colocaria um canguru em frente ao prédio para os australianos se sentirem em casa. O comitê do país da Oceania respondeu que precisava era de encanadores. No dia seguinte, o prefeito reconheceu que o prédio da Austrália era, de fato, o pior. Um mutirão de 600 funcionários foi montado para colocar a casa em ordem (na terça-feira, os australianos começaram a trocar os hotéis pela Vila). Ainda na mesma segunda-feira, foi a vez da delegação da Suécia abandonar as acomodações, cobrando melhorias.
Apesar dos contratempos, o governo fluminense demonstra otimismo com aproximação dos Jogos.
– A maior parte das obras fundamentais está finalizada. Não há risco de paralisação de serviços. Devido ao auxílio financeiro de R$ 2,9 bilhões do governo federal para a segurança na Olimpíada, o Estado pôde remanejar verbas do seu orçamento e colocar em dia os salários do servidores – afirma o chefe da Casa Civil, Leonardo Espíndola.
O socorro financeiro ao qual o secretário se refere veio após a decretação do estado de calamidade pública, em junho. A verba que permitiu pôr em dia os vencimentos de policiais militares e agentes da Polícia Civil chegou em boa hora. Às vésperas dos Jogos, cresceu o nível de preocupação com possíveis atentados terroristas no Brasil, em decorrência de uma sequência de episódios sangrentos na França e na Alemanha. Quarenta e quatro anos depois do ataque a integrantes da delegação de Israel na Olimpíada de Munique, é real o temor de que atletas sejam alvos de um novo ato extremista.
– Terrorismo sempre foi nossa preocupação número 1, desde os Jogos Pan-Americanos de 2007. Recebemos informes semanais da nossa célula de inteligência integrada de Segurança Pública, que reúne agentes de inteligência federais e do Estado, além da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Estamos em alerta, mas sem nenhum incidente no horizonte – afirma José Mariano Beltrame, secretário de Segurança do Estado do Rio.
Indagado por ZH se desaconselharia passeios em pontos turísticos de atletas das delegações potencialmente mais visadas por terroristas, Beltrame foi sucinto:
– Não há qualquer recomendação nesse sentido, mesmo das embaixadas.
Se a ameaça terrorista desencadeou dores de cabeça nas autoridades, o temor com o zika provocou baixas na Olimpíada. Nem as recomendações em contrário da Organização Mundial de Saúde, a OMS (que enxerga risco mínimo de infecção no inverno brasileiro), e do Ministério da Saúde (que registrou apenas 12 casos do vírus no Rio na última semana de maio) foram suficientes para frear desistências. No golfe, oito dos 20 melhores jogadores do mundo decidiram ficar longe do Brasil, entre eles o líder do ranking, o australiano Jason Day. No tênis, as ausências mais sentidas serão do canadense Milos Raonic, sétimo do ranking e atual vice-campeão de Wimbledon, e do tcheco Tomas Berdych, oitavo colocado na lista da ATP.
O escândalo do esquema de doping estatal na Rússia foi outro fator de turbulência no movimento olímpico, com reflexos imediatos nos Jogos de 2016. Com 67 homens e mulheres classificados para o Rio, a equipe inteira de atletismo do país foi excluída da Olimpíada, entre elas a supercampeã do salto com vara Elena Isinbaeva. Mas a decisão do Comitê Olímpico Internacional (COI) de delegar às demais federações esportivas a exclusão de atletas foi criticada por órgãos como Agência Mundial Antidopagem (Wada) e Agência Antidoping dos EUA, que pediam o banimento geral e irrestrito da Rússia.
– Os critérios adotados vão inevitavelmente conduzir a uma falta de harmonização, desafios em potencial e menor proteção para atletas limpos – disse o diretor-geral da Wada, Olivier Niggli.
Com ou sem doping, os Jogos começam oficialmente em 5 de agosto. Veremos o que virá com eles.