
O sol que nasce em Pelotas, às vésperas de completar três dolorosos anos desde aquele fatídico 1º de maio de 2022, carrega um peso extra para Rai Duarte.
O café da manhã, antes um simples ritual, agora ecoa a memória dos longos dias de privação no hospital, uma liberdade reconquistada sob o espectro das lembranças dolorosas.
A caminhada matinal pelo bairro onde mora, ainda que um alívio para o corpo marcado, não o conduz ao trabalho, mas sim a um dia sinalizado pela ausência forçada, em uma licença médica que se arrasta por três longos anos.
O período ainda pontuado por inúmeras viagens para consultas médicas e cirurgias em Porto Alegre, a mesma cidade onde sofreu tamanha dor.
Há três anos, conforme denúncia do Ministério Público do RS, Duarte e outros 11 torcedores do Brasil de Pelotas foram torturados por policiais militares no Estádio Passo D'Areia, após a partida entre a equipe pelotense e o São José, pelo Brasileirão Série C daquele ano.

Tortura
Rai contou que foi retirado de um ônibus de excursão após o jogo entre por três policiais sem justificativa. Desde então, passou a ser agredido com tapas e chutes. Em seguida, foi levado para uma sala onde estavam outros 11 torcedores do Xavante. Esses estavam detidos por participarem de um conflito com a torcida do time da Capital, no qual Duarte não estava.
Ao chegar nesta sala e se deparar com os outros homens, algemados, sendo agredidos, passou a questionar a abordagem. Policial voluntário por três anos, ele afirmara conhecer os procedimentos corretos.
Duarte explicou que, depois, foi levado para uma outra sala — que seria um banheiro desativado e sem luz. Lá, teve a cabeça batida contra a parede uma série de vezes e agredido com bastões (cassetetes).
Para Rai, as consequências foram 116 dias de internação e 20 cirurgias — a última delas em novembro de 2024. Agora, a busca por retomar a normalidade que esbarra na burocracia do INSS, pois sua liberação médica ainda não chegou.
A solução do caso, que envolve a punição aos responsáveis e uma indenização às vítimas, entretanto, ainda está longe de acontecer.
— Graças a Deus não fiquei com restrição de alimentação. Só não posso dormir de barriga para baixo por causa das telas que foram aplicadas na última cirurgia. Sem trabalhar, estou me dedicando aos estudos — afirmou Rai Duarte, que cursa Geografia na UFPEL e o curso Técnico em Agente Comunitário de Saúde.
Ausência no trabalho
Rai, 36 anos, é agente comunitário de saúde em Pelotas e está afastado do trabalho há três anos. Ausência que lhe compromete financeiramente, especialmente no cuidado com os dois filhos. Mesmo liberado pelo médico, o retorno ainda depende de um documento que está em análise pelo INSS.
— Foi uma perfuração intestinal que afetou a musculatura. Para refazer, usamos injeção de botox e colocamos uma tela de polipropileno junto aos músculos, que se adapta ao organismo — explicou Carlos Corso, chefe do serviço de cirurgia geral do Hospital de Clínicas.
Busca por justiça
Na esfera judicial, Rai acompanhou os depoimentos na Justiça Militar e reconheceu alguns dos 17 policiais acusados. Há uma preocupação com a lentidão do processo, que completa três anos sem uma solução.
— Enquanto esses caras não forem realmente punidos, estarão dando um precedente para acontecer com outros por aí — lamenta Rai.
As oitivas na Justiça Militar são parte do processo de apuração dos crimes militares. Vítimas e suas testemunhas foram ouvidas no ano passado, enquanto os réus e suas testemunhas (um total de 35 pessoas) passarão por audiências entre os dias 5, 6, 8, 19 e 20 de maio.
A assistência de acusação nomeada pelo Rai entende que todos policiais que estiveram presentes no local onde foram praticadas as agressões são coautores do crime.
— Agiam em conluio, garantindo o isolamento do local, a rendição das vítimas e demais circunstâncias que permitissem o cometimento dos referidos crimes, além da omissão de nenhum policial ter se insurgido contra as agressões e torturas, pelo contrário, riam e incentivavam — destacou o advogado Rafael Martinelli.
Rai e seu advogado acreditam que uma sentença possa ser proferida em 2026, com a expectativa de que os responsáveis sejam punidos. Há também um pedido de indenização ao Estado pelos danos físicos e morais sofridos.
O que diz a defesa dos PM's

O advogado de oito dos policiais militares réus no caso Rai Duarte, Fabio Silveira informa que em maio serão ouvidas testemunhas de mérito, com conhecimento direto dos fatos e do comportamento dos policiais e também serão testemunhas abonatórias, que apresentarão informações sobre a atuação técnica dos policiais em situações semelhantes.
— A defesa busca individualizar as responsabilidades, consideradas até o momento genéricas e imprecisas, reafirmando o direito à presunção de inocência e refutando generalizações não comprovadas — destacou Fabio Silveira.
As demais defesas não responderam aos contatos de ZH.
Punições administrativas
Na esfera de apuração do processo disciplinar do policial militar, as funções estão sendo cumpridas pela corregedoria geral da Brigada Militar.
Ainda em 2022, após o ocorrido, 10 dos policiais envolvidos no caso foram punidos com 30 dias de detenção dentro do processo administrativo disciplinar. Entretanto, suas defesas recorreram da decisão.
Também foi aberto um Conselho de Justificação e dois Conselhos de Disciplina. O primeiro julga a conduta dos policiais oficiais, enquanto o outro dos aspirantes.
Consultada pela reportagem, entretanto, a Brigada Militar não quis comentar o assunto. Segundo o corregedor-geral Vladimir Rosa, a BM já concluiu o processo investigativo.
Policiais em ação

Conforme apuração de ZH, todos os policiais réus no Caso Rai Duarte seguem atuando normalmente pela Brigada Militar.
Seis deles cumprem funções administrativas no Comando de Policiamento da Capital (CPC), enquanto outro exerce a mesma função no centro administrativo da polícia militar de Goiânia-GO. Os demais seguem atuando no policiamento extensivo, distribuídos entre os batalhões, 9º, 11º e 19º.