
Homem com H (2025) é uma cinebiografia fiel ao espírito do artista retratado, o cantor Ney Matogrosso, 83 anos. Em cartaz nos cinemas a partir desta quinta-feira (1º), é um filme despudorado, sensível e arrebatador.
O título vem do forró composto pelo paraibano Antônio Barros e gravado em 1981 por Ney. Como o filme reconstitui, ele não queria cantar Homem com H, achava que a música não tinha nada a ver com o seu repertório. Mas foi convencido pelo amigo Gonzaguinha (1945-1991): na sua voz, os versos machistas ganharam outro significado, virando uma ironia, um deboche sobre as expectativas de masculinidade.
O personagem é encarnado por Jesuíta Barbosa, ator de 33 anos que despontou no filme Tatuagem (2013) e que chamou a atenção como o Jove da novela Pantanal (2022). O diretor e roteirista é Esmir Filho, que ganhou fama com o curta Tapa na Pantera (2006) e que fez no interior do Rio Grande do Sul o longa Os Famosos e os Duendes da Morte (2009).
Equilíbrio entre cinema autoral e filme popular

O trabalho de Esmir Filho com um cinema mais experimental contribui para que Homem com H se diferencie das cinebiografias convencionais que a gente já viu de artistas como Elis Regina, Tim Maia, Gal Costa e Cazuza. O diretor evita os enquadramentos típicos da TV, imprime intensidade nas cenas de sexo — com direito a uma suruba filmada com criatividade e sensualidade — e aposta em metáforas e elipses.
Mas, ao mesmo tempo, o cineasta é generoso com o grande público. Os números musicais incluem os maiores sucessos de Ney Matogrosso, como a arrepiante Rosa de Hiroshima (1974) e O Vira (1974), ambas da época dos Secos & Molhados, a contagiante Bandido Corazón (1976) e Não Existe Pecado ao Sul do Equador (1978). Os diálogos ajudam a explicar os sentimentos dos personagens. E a história é contada em ordem cronológica e com letreiros que indicam o ano e o cenário, desde a infância do Ney, na cidade de Bela Vista, em Mato Grosso do Sul, onde, por causa da sua sexualidade, ele tinha embates violentos com o pai, o militar Antônio Matogrosso Pereira, vivido por Rômulo Braga, de Carvão (2022) — Hermila Guedes encarna a mãe, Beita.
— Não quero filho viado aqui nessa casa! — brada o pai.
— Não sou viado. Agora, quando eu for, pai, aí o Brasil inteiro vai saber! — devolve o filho.
Abertura tem metáfora da trajetória de Ney Matogrosso

A primeiríssima cena já mostra que Homem com H é um filme maiúsculo e que busca o casamento entre o cinema autoral e o cinema popular. Um menino aparece sem camisa e de pés descalços desbravando uma floresta, experimentando frutos e entrando na água. É uma metáfora bonita da trajetória de Ney Matogrosso, um artista marcado pela coragem, pela ousadia, pelo desnudamento, tanto do corpo quanto das emoções.
O diretor completa essa ideia ao intercalar pequenos momentos de um show do Ney já adulto, engatinhando no palco na pele de Jesuíta Barbosa, que fez um trabalho memorável. Ele consegue incorporar os trejeitos do cantor sem escorregar pra caricatura. E sem se arriscar a uma comparação injusta: Jesuíta não canta no filme, afinal, é muito difícil imitar a voz de Ney Matogrosso.
Dois grandes amores do cantor: Cazuza e Marco de Maria

Homem com H procura retratar todas as fases de Ney — incluindo os tempos de Aeronáutica, quando Esmir Filho evoca Bom Trabalho (1999), de Claire Denis — e todos os personagens importantes da sua vida. Entre esses, estão João Ricardo (papel de Mauro Soares) e Gerson Conrad (Jeff Lyrio), seus parceiros no Secos & Molhados, e também dois de seus grandes amores, ambos mortos por causa da aids: Cazuza (Jullio Reis) e Marco de Maria (Bruno Montaleone).
Se Ney Matogrosso foi simplesmente cortado da cinebiografia Cazuza: O Tempo Não Para (2004), de Sandra Werneck e Walter Carvalho, em Homem com H Cazuza (1958-1990) é um coadjuvante de peso. Ilustra tanto o tesão juvenil do protagonista quanto sua maturidade mais reflexiva, sobretudo diante da finitude.
Símbolo da resistência à ditadura militar

O filme conta que sempre houve um refúgio para Ney: o palco, diz o protagonista, se tornou sua fantasia, a sua válvula de escape, o lugar onde põe uma máscara para extravasar e tentar "desreprimir" as pessoas. Ney Matogrosso sempre foi um símbolo da luta contra a caretice e da defesa apaixonada de uma liberdade infinita, seja na vida artística, seja na vida pessoal. Mas Homem com H também mostra como a trajetória do cantor espelhou a do próprio Brasil, oprimido pela ditadura militar e por preconceitos sociais.
Não à toa, Esmir Filho fecha a cinebiografia com um dos hinos de protesto nascidos durante os chamados anos de chumbo, Eu Quero É Botar meu Bloco na Rua, composto em 1973 por Sérgio Sampaio (1947-1994) e gravado em 2019 por Ney. E, comprovando sua longevidade, é o próprio cantor que assume o palco para, em um show filmado em 2024, interpretar os seguintes versos: "Há quem diga que eu dormi de touca / Que eu perdi a boca, que eu fugi da briga / Que eu caí do galho e que não vi saída / Que eu morri de medo quando o pau quebrou / Há quem diga que eu não sei de nada / Que eu não sou de nada e não peço desculpas / Que eu não tenho culpa, mas que eu dei bobeira / E que Durango Kid quase me pegou / Eu quero é botar meu bloco na rua / Brincar, botar pra gemer / Eu quero é botar meu bloco na rua / Gingar, pra dar e vender".
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