Aos três anos de idade, Anderson Wassian sofreu uma grave alergia medicamentosa e precisou ser internado na UTI de um hospital. O menino passou 40 dias em coma e acabou ficando cego.
Hoje, aos 17, Anderson é um dos destaques do judô paraolímpico gaúcho, integrante da equipe da Associação de Cegos do RS (Acergs). Foi vice-campeão nas Paraolimpíadas Escolares do ano passado, competição nacional organizada pelo Comitê Paraolímpico do Brasil (CPB), e no Grand Prix Nacional de Judô para Cegos. Recentemente, trouxe uma medalha de prata dos Jogos ParaPanamericanos de Jovens.
Sua trajetória até os tatames não foi fácil. Com sequelas físicas depois de vencer o coma – como queimaduras pelo corpo e os cílios que cresciam para o lado interno dos olhos –, o menino teve uma infância marcada por cirurgias e depressão. De temperamento arredio, quase não tinha amigos. A mãe, Tânia Karina Wassian, conta que a visão foi diminuindo aos poucos. Embora Anderson não tenha ficado totalmente cego, a acuidade visual é muito baixa e agravada por uma fotofobia, que a torna oscilante.
– Não era possível medir a acuidade visual dele, e as escolas nas quais ele estudava, muitas vezes, cobravam como se ele enxergasse. Não o tratavam como deficiente visual. Ele tentava andar de bicicleta e não conseguia. Jogava futebol e batia a cabeça na trave. Ele tentava ter uma vida de criança que enxergava, mas não tinha condições – relata a mãe.
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Somente aos 13 anos Anderson sentiu o jogo virar. Convencida pelos médicos de que a falta de visão do filho era irreversível, Tânia decidiu que precisava dar a ele condições para que tivesse uma vida adaptada à realidade de um deficiente visual. A primeira atitude foi tirá-lo da escola onde estudava e matriculá-lo no Instituto Santa Luzia, tradicional colégio de Porto Alegre conhecido por receber grande número de cegos entre seus alunos. Anderson desabrochou. Aprendeu a andar com a bengala e descobriu o paradesporto.
Nas aulas de educação física, conheceu o goalball. Chegou a praticar o esporte por algum tempo, inclusive disputando as Paraolimpíadas Escolares de 2014. Mas Anderson gostava mesmo era de judô. Desde pequeno, brincava de luta com o irmão mais velho. Pela TV, admirava o ex-judoca gaúcho João Derly, bicampeão mundial.
– O judô para mim significa autonomia, disciplina e noção de respeito ao próximo. Amo o que eu faço – declara Anderson.
Sabendo do interesse, um professor do Santa Luzia o apresentou aos senseis do Grêmio Naútico União. Anderson ganhou uma bolsa para treinar no clube.
A permanência no União durou poucos meses. Motivado por um grupo de amigos, também deficientes visuais, que eram judocas da Acergs, Anderson passou a treinar na Faculdade de Educação Física, Fisioterapia e Dança da UFRGS. Por meio de uma parceria com o projeto de extensão Bugre Lucena, a Associação de Cegos do Estado oferece a prática do judô para jovens e adultos.
Gustavo Schumacher, professor do Bugre Lucena e técnico da equipe da Acergs, relembra que, logo que chegou, Anderson já mostrava ser um atleta diferenciado:
– Quando a pessoa começa a praticar judô, ela demora um tempo para iniciar as competições. Só que, no caso do Anderson, nós o colocamos para competir mais cedo do que a média. Justamente porque víamos nele um grande potencial. Tinha uma postura diferenciada, um comportamento em cima do tatame adequado nos combates. É difícil traduzir em palavras. Mas a gente, que tem experiência, bate o olho e sabe quando um atleta tem potencial. Ele reproduz bem o que pedimos. É coordenado. Tem muita força física.
Os treinos de Anderson duram cerca de uma hora e meia, no período da noite, de segunda a quinta. Para manter o físico em dia, o faixa laranja corre na esteira por 25 a 30 minutos, quatro vezes por semana, em uma academia perto de casa. O peso é uma preocupação constante na vida do paratleta. Para não ultrapassar os 66kg, categoria em que o jovem luta, cortou carboidratos e mantém uma alimentação à base de verduras e proteínas.
A bolsa que recebe do governo federal como paratleta na categoria estudantil – R$ 370 mensais – ajuda na compra dos alimentos necessários.
O dia de Anderson começa cedo. Às 6h, já está de pé. Acompanhado da mãe, caminha até a parada e pega o ônibus que o leva para o bairro Cavalhada, onde fica o Santa Luzia. Lá, se desloca sozinho, com o auxílio da bengala. Quando precisa viajar para disputar alguma competição, o colégio lhe dá suporte, oferecendo a possibilidade de recuperar trabalhos. O lazer fica em segundo plano.
– Nunca fui muito de ir a festas. Sou bem caseiro. Até porque estudo de manhã e treino à noite. Nem tenho muito tempo de ficar saindo. Então, para mim, essa rotina é bem tranquila – garante Anderson.
Quando fala das próprias virtudes como judoca, Anderson diz ser muito confiante em cima de um tatame. Schumacher complementa:
– Ele tem toda uma postura de combate, uma capacidade de compreender o cenário da luta. Ele me ouve muito durante os duelos. Ele capta muito facilmente o que estou passando. Temos uma sintonia muito boa.
Anderson atribui ao apoio da família – especialmente da mãe – grande parte do êxito na carreira:
– Minha mãe sempre corre comigo em tudo que eu preciso: laudo médico, exames físicos. Além disso, ela me ajuda a segurar na alimentação, me alertando para o que vou comer. Está sempre de olho no que eu faço, querendo o meu melhor. Esse apoio é fundamental para mim.
O garoto sonha com os Jogos Paraolímpicos de Tóquio, em 2020. A mãe orgulha-se da transformação que o esporte causou na vida do filho:
– Hoje ele tem identidade, tem vida. Antes ele era o coitadinho, aquela criança depressiva. Hoje ele é o Anderson Wassian, atleta do judô. É um vitorioso, uma pessoa dedicada e totalmente transformada pelo esporte.
Nadando em águas mais tranquilas
Alexandre Barbosa, garoto de 16 anos que mora com a mãe e dois irmãos na Vila Santa Rosa, localizada no bairro Rubem Berta, é uma das apostas gaúchas para brilhar na natação paraolímpica brasileira nos próximos anos.
Como resultados mais relevantes da curta carreira, ele acumula um bicampeonato nas Paraolimpíadas Escolares e a medalha de bronze nos Jogos ParaPanamericanos de Jovens, realizados em São Paulo, em março – sua estreia em competições internacionais.
Alexandre tem uma deficiência intelectual que afeta a cognição – seu desenvolvimento de aprendizado equivale ao de um garoto de 11 anos. Foi nas aulas de educação física, de uma escola especial de Porto Alegre, que ele começou a chamar a atenção da professora Fernanda Michaelsen.
– Ele se destacava em relação à habilidade motora. Tinha sempre um ótimo desempenho nas corridas e nos testes de velocidade – recorda Fernanda.
Aos 12 anos, Alexandre foi levado pela professora a experimentar aulas de natação na Esporte +, ONG que atua para fomentar o paradesporto. Foi amor à primeira braçada.
A grade de treinos é de gente grande. Entre trabalhos técnicos e físicos, são cerca de quatro horas diárias. Fernanda explica que paciência e rotina são fundamentais para que um deficiente intelectual consiga se desenvolver de maneira adequada durante os trabalhos:
– São etapas. Eu chamo de treinamentos ondulatórios. Por exemplo: eu vou trabalhar a braçada de crawl. Ele desenvolve e chega em um limite de aprendizado. Cabe a mim, como técnica, entender esse contexto. Tenho que fazer uma pausa, porque dali para frente ele não vai absorver mais nada. A partir do momento em que aquilo vira uma rotina, eu passo para outro movimento. O processo é o mesmo de uma pessoa sem deficiência, porém, mais demorado.
O adolescente já se mostra maduro para encarar o alto rendimento no esporte. Conta que se desloca sozinho, de ônibus, até o Lindoia Tênis Clube, que cede as piscinas para os treinamentos da natação da Esporte +. Alexandre garante que a vida de atleta não atrapalha o desempenho na Escola Estadual Sarmento Leite, onde estuda no turno da tarde, no sexto ano do Ensino Fundamental:
– Gosto de treinar e de estudar. Tiro notas boas. Minhas matérias preferidas são matemática e português.
Força muscular nos membros inferiores e resistência cardiorrespiratória estão entre as principais virtudes de Alexandre dentro da piscina. Fernanda afirma:
– É genético. Ele já veio com essa predisposição. Só está sendo trabalhado.
Como premiação pelo pódio nas Paraolimpíadas Escolares, Alexandre recebe uma bolsa-atleta escolar, paga pelo governo federal, de R$ 370 mensais para auxiliar com gastos pessoais. Ele planeja ser um paratleta profissional e dar um futuro melhor para a família – a mãe e o irmão mais velho do adolescente também têm dificuldades de compreensão cognitiva:
– Pretendo chegar ao topo. Quero poder comprar uma casa para a minha mãe, constituir uma família, continuar na natação e disputar uma Paraolimpíada de adultos.
A ideia é apoiada pela treinadora, que aposta na explosão de Alexandre na natação paraolímpica adulta dentro de poucos anos:
– Acho que ele tem tudo para ir a Tóquio em 2020. O desempenho dele é sempre acima do planejado por mim. Nos 100 metros nado costas, por exemplo, um adulto desponta fazendo, em média, um minuto e 10 segundos. O Alexandre, que tem apenas três anos de natação, já consegue um minuto e 22.
O menino pobre do Rubem Berta, vindo de uma situação de extrema vulnerabilidade social, já vê sua vida transformada:
– Sou outra pessoa graças ao esporte. Antes, não respeitava ninguém e brigava muito com os outros. Hoje sou um guri focado, determinado. E quase não brigo mais.
A filha do vento
Bruna Giacomin ganhou o apelido de "filha do vento" ao vencer as Paraolimpíadas Escolares de 2015, em Natal, no Rio Grande do Norte, tamanha era sua velocidade na cadeira de rodas. Porto-alegrense de 16 anos, que mora com a mãe e o padrasto no bairro Santana, a adolescente de classe média nasceu com mielomeningocele, lesão na coluna que lhe tirou os movimentos das pernas. Sua vida começou a mudar aos 12 anos, quando a mãe, a gerente de TI Simone Andeglieri, encontrou em uma pesquisa na internet a Associação RS Paradesporto. Bruna, que até então vivia em uma rotina de escola e fisioterapia, viu um novo mundo de possibilidades se abrindo. Quando ingressou na RS Paradesporto, experimentou diversos esportes. Até que um dia, após vencer uma corrida em cadeira de rodas, a diretora-técnica da associação, Cíntia Moura, a convidou para continuar na modalidade.
Alexandre Cavedini, treinador de Bruna, destaca a garra e o foco nos treinos, realizados no Centro Estadual de Treinamento Esportivo (Cete):
– As marcas dela em nível escolar são excelentes. E ela ainda é muito jovem. Tem só 16 anos. Nos 100 metros rasos, por exemplo, ela faz 29 segundos. Já nos 400, ela chega a dois minutos e três segundos. Para a idade dela, são boas marcas (como efeito de comparação, nas Paraolimpíadas de 2016, a vencedora da prova de 100 metros na categoria T-53, em que Bruna corre, cravou 16 segundos e 29 centésimos).
Os treinos ocorrem três vezes por semana. Bruna chega ao Cete levada por um transporte pago pela mãe. Lá, se transfere da cadeira que usa no cotidiano para a de corrida e permanece na pista por uma hora e meia. A cadeira de corrida tem três rodas, sendo que a da frente é menor do que as demais, que são do mesmo tamanho das rodas de uma cadeira usual. Um dispositivo, acionado pelo paratleta, auxilia no momento de fazer uma curva.
A cadeira usada por Bruna, de fabricação nacional, pertence a RS Paradesporto e custa R$ 15 mil. O valor foi obtido em um edital do projeto Criança Esperança – com o qual a ONG foi contemplada.
– A posição em que o cadeirante fica é diferente da que ele adota na cadeira de rodas do dia a dia. Na de corrida, a pessoa fica inclinada. É como se ficasse de joelhos no chão. Doem as costas e é incômodo para a musculatura. O rosto fica voltado para o chão. Não tem ângulo de visão para olhar para os lados. Para se adaptar, são necessários muitos exercícios para fortalecer a musculatura. No caso da Bruna, dos membros superiores – explica Cíntia Florit Moura, diretora técnica da Associação RS Paradesporto.
Bruna cursa o primeiro ano do Ensino Médio no Colégio Bom Conselho. Para conciliar os estudos com a vida de atleta, a adolescente afirma redobrar a atenção nas aulas e aproveitar o tempo livre em casa para reforçar as matérias. Mas o dia a dia da jovem não se resume a compromissos. Como qualquer garota de 16 anos, gosta de se reunir com os amigos, assistir a séries, ir ao shopping e ao cinema.
– Como pretendo ser uma atleta profissional, sou muito focada. Se me chamam para ir em alguma festa na véspera dos treinos, eu não vou. Meus amigos já sabem – garante Bruna.
Em 2017, a jovem participou da etapa regional do Circuito Loterias Caixa, mas não obteve classificação para a fase nacional. O calendário do ano ainda inclui as Paraolimpíadas Escolares, onde, inclusive, ostenta um bicampeonato – nas provas de 100 e 400 metros rasos. Graças a essa conquista, a gaúcha já recebe uma bolsa-atleta escolar de R$ 370 mensais – que usa para investir na compra de materiais para os treinos, como luvas e capacetes.
Bruna sonha em disputar a Paraolimpíada de Tóquio, em 2020. A menina tem consciência do quanto o esporte transformou sua vida:
– Por causa do esporte, fiquei mais independente. Aprendi a fazer coisas básicas que eu não sabia antes, como andar sozinha com a cadeira de rodas, me transferir da cadeira para cama, fazer a minha própria higiene. E o esporte mudou também a maneira como eu me relaciono com as pessoas. Acho que a minha presença na escola e o fato de eu ser atleta mudou a noção dos professores sobre inclusão. Nas aulas de educação física, por exemplo, às vezes eles dão aulas de vôlei sentado para toda a turma.
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