Quem coloca leite para ferver tem que ficar ali, atento, de plantão. Basta um vacilo, uma hesitação para colocar tudo a perder. Um detalhe nos separa a xícara cheia, pronta para beber, do líquido espalhado pela chapa do fogão. Na Copa do Mundo é assim. Com grande frequência, pormenores mudam de forma definitiva os rumos da competição. A questão é que, nós, brasileiros, temos a tendência de potencializar e lamentar o detalhe que nos prejudica, ignorando quando nos beneficia.
Esquecemos que três dos nossos aclamados títulos vieram após alguma circunstância decisiva para o desfecho glorioso. Em 1962, na fase de grupos, o Brasil perdia por 1 a 0 para a Espanha quando o lateral esquerdo Nilton Santos, 37 anos, fez pênalti no atacante Collar. Aproveitando que o juiz estava longe do lance, o experiente jogador deu um passo para o lado e ficou estrategicamente plantado fora da área. O árbitro caiu na conversa e não marcou uma penalidade máxima que poderia sacramentar a vitória espanhola e determinar a eliminação precoce da Seleção Brasileira. Após o susto e a polêmica ajuda, o Brasil virou o jogo, garantiu classificação e, sob comando de Garrincha, embalou para a conquista do bi.
Gol de Branco
O pormenor também foi brasileiro na Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos, na quebra do jejum de 24 anos sem título mundial. Nas quartas de final, após abrir 2 a 0 contra a Holanda no segundo tempo, com gols de Romário e Bebeto, o time canarinho cedeu o empate e se perturbou. Quando tudo pareceria favorecer uma virada histórica da Laranja Mecânica, o lateral Branco sofreu falta de Jonk no lado esquerdo de ataque do Brasil, longe do gol. Apesar da distância, o gaúcho de Bagé apostou no seu chute forte e decidiu cobrar direto. No meio do caminho, Romário faz um corta luz para desviar da bola, que foi parar na rede, junto ao poste esquerdo, surpreendendo o goleiro Ed de Goye. O gol improvável aos 36 minutos inverteu o quadro anímico da partida. Empolgado, o time brasileiro assegurou a vitória por 3 a 2, dando sequência à trajetória para reconquista da hegemonia mundial.
Ronaldinho Gaúcho
O detalhe igualmente jogou a favor do Brasil na conquista do Penta, em 2002, na Copa sediada por Japão e Coreia do Sul. Também foi nas quartas de final, contra a Inglaterra. Após sair perdendo e empatar ainda no primeiro tempo, o Brasil chegou à vitória com um gol "espírita" de Ronaldinho Gaúcho, aos cinco minutos da etapa final. Foi na cobrança de uma falta lateral pelo flanco direito, distante da área. Quando todos esperavam um cruzamento, ele mandou a bola no ângulo direito de Seaman. De tão improvável, até hoje se discute se o craque gaúcho tentou mesmo encobrir o goleiro inglês ou se o gol resultou de um cruzamento mal executado. O certo é que a virada em jogada tão insólita deixou os ingleses atordoados. O English Team não conseguiu reagir, mesmo tendo vantagem numérica a partir dos 12 minutos, quando o próprio Ronaldinho Gaúcho foi expulso por falta violenta em Mills.
Sonho adiado
Como se viu, três das estrelas do escudo da CBF contaram com a ajuda de minúcias decisivas, mas a gente esquece delas, preferindo enaltecer as qualidades da Canarinho na conquista dos títulos. No entanto, quando o detalhe vai contra nossas pretensões, lamentamos à exaustão.
Em 2006, contra a França, foi o descuido na marcação de Thierry Henry no gol da vitória francesa por 1 a 0. Em 2010, duas queixas no mesmo jogo — a derrota de virada contra a Holanda por 2 a 1: a falha grotesca de Júlio César no empate holandês e a expulsão de Felipe Melo, após pisão irresponsável em Robben, deixando o time perturbado e sem reação em campo.
Na Rússia, em 2018, a derrota de 2 a 1 para a Bélgica começou com o gol contra marcado por Fernandinho, que se atrapalhou e desviou a cobrança de um escanteio para a própria meta. Até que chegamos ao Catar. Como na cena do leite fervendo, todo mundo sabia que tinha que prestar a atenção naqueles minutos finais da prorrogação. Que não dava para se descuidar porque a Croácia jogava por uma bola para chegar ao empate e levar a decisão para os pênaltis. Mas ninguém notou a fervura do leite, em momento de desatenção que custou outra eliminação precoce em Copa do Mundo. Um novo detalhe para adiar o sonho do hexa outra vez.