Foram 1.440 dias digerindo sete gols e recompondo caco a caco o nosso principal orgulho, esfacelado pela Alemanha no maior vexame da história do futebol brasileiro. Mas o dia de começar a colar esse momento nas páginas do passado, finalmente, chegou. A partir das 15h de domingo (17), o Brasil encara a Suíça às margens do Rio Don, em Rostov. É o começo da caminhada em busca do hexa – que vale mais do que o ineditismo. Para a Seleção, ser Hexa, assim mesmo, com maiúsculo, significa dizer que o Mineiraço foi uma tarde ruim.
O problema é que aquela tarde ainda não terminou. Ela segue ali, dobrando a esquina, esperando o momento para nos lembrar: vocês, o melhor futebol do mundo, levaram 7 a 1 da Alemanha. Aqui mesmo em Sochi, onde a Seleção Brasileira treina lambida pelo vento fresco vindo do Mar Negro e com um sol de Rio de Janeiro. Até aqui, esse fantasma nos persegue. Espanhóis, portugueses, africanos, chineses, todos nos identificam como brasileiros e soltam uma piadinha.
- Imagina uma final Brasil x Alemanha, como será, hein, ô pá? – indagou-me um português com um sorriso sarcástico.
Um espanhol, sem o sorrisinho de canto de boca, mas com igual dose de ironia, alertou-me e saiu realizado:
- Cuidado com a Alemanha!
Até os russos, até eles debocham da gente. Fomos jantar em um restaurante escondido numa viela próxima à orla aqui de Sochi. Por sorte, o encontramos, era o único aberto até as 2h para saciar a fome de quem vive em um fuso e trabalha no outro. O dono, um sujeito atarracado, com corpanzil de lutador azerbaijano, mais ou menos na faixa dos 30 anos, nos recebeu sorrindo. Sua mulher, em um inglês esforçado, disse que ele estava eufórico por sermos brasileiros.
- Ele assiste a futebol da manhã à noite – contou-nos ela.
O sujeito, a alguns metros, sorriu consentindo. Ficou à vontade com a nossa receptividade à conversa. Soltou-se mesmo. Dois minutos depois, mandou seu míssil de ironia, mostrando sete dedos das mãos:
- Brasil. Germani. 7 a 1.
Vou dizer: dói. Dói mesmo. Tento imaginar o que passaram Thiago Silva, Marcelo, Paulinho, Willian, Fernandinho e Neymar. Eles estavam na última Copa. Atravessaram quatro anos lidando com essa marca. Agora, ganharam uma oportunidade de redesenhar o destino, de colocar sobre essa tatuagem uma outra, flamante, para mostrar aos netos.
O emblema da guinada
Paulinho talvez seja o caso mais emblemático da guinada da Seleção Brasileira nesta Era Tite. Saiu do Tottenham, onde era reserva, para buscar a sorte no Guanghzou Evergrand, da China. Parecia impossível que voltaria ao primeiro escalão do futebol. Mas, para quem, aos 18 anos, padeceu na Lituânia e na Polônia e voltou ao Brasil para recomeçar na quarta divisão paulista, tudo é possível. Paulinho virou um dos caras da Seleção e, quem diria, hoje divide luzes com Messi, Iniesta e Suárez no Barcelona.
Em busca da redenção
O percurso de Thiago Silva até este domingo em Rostov foi mais pedregoso nestes últimos quatro anos. O zagueiro acabou eleito um dos vilões da última Copa. Tão vilão que poucos se lembram de que ele nem estava em campo naquela tarde no Mineirão. Só que por suas lágrimas foi rotulado como um líder instável. Para completar, ainda fez pênalti na eliminação para o Paraguai na Copa América, a primeira competição depois do 7 a 1. Para o país todo, a camisa o amarelava por inteiro. Um dos melhores zagueiros do mundo, Thiago cumpriu uma pena injusta. Ficou dois anos de fora. Quando a Seleção jogava, ouvia dos filhos:
- Pai, por que você não está lá?
O zagueiro voltou à Seleção apenas em setembro de 2016. Tite planejou o retorno do seu mais experiente jogador de forma gradativa. Primeiro ao grupo. Depois, ao time. Só em março deste ano, aqui mesmo na Rússia, virou titular. Thiago sabe, aos 33 anos, que esta é sua última chance. Precisa desta terceira Copa da sua vida para salvar as outras duas. Ou o júri do futebol será impiedoso. No mundo da bola, julga-se com o coração. Só o Hexa pode equilibrar a balança a favor do zagueiro.
De guri a líder da Seleção
Para Neymar, a Rússia possivelmente será mais uma Copa. Aos 26 anos, o relógio permitirá sua presença no Catar, em 2022, e até na América do Norte, em 2026, se mantiver o futebol como filosofia de vida. Mas é aqui que ele pode registrar um marco na sua vida. A partir deste domingo, em Rostov, Neymar pode trocar o posto de presidente dos parças pelo de líder da Seleção do qual é craque.
Se Neymar conduzir o Brasil em campo com a maturidade dos últimos meses, teremos visto uma transformação aqui em Sochi. É como se ele tivesse chegado guri e saído homem da Rússia. Isso tem um significado que transcende a Copa. Porque um guri jamais se ombreará a Messi e a Cristiano Ronaldo. Agora, um craque adulto, esse sim, pode herdar a coroa e o cetro monopolizados pelo argentino e pelo português há uma década. A era deles vai acabar logo. Neymar precisa desta Copa para mostrar ao mundo que é o próximo nesta linha sucessória.
Os interesses da Seleção e de Tite
A Seleção parece entender todas essas urgências individuais nesta Copa. O grande mérito de Tite talvez seja agregar todas elas e drená-las para o time. Aliás, os grandes técnicos são justamente aqueles que criam a coletividade a partir de interesses próprios. Tite mesmo está inserido nesse contexto. A Copa pode significar para ele, o gringo de São Braz, como costuma dizer, o passe para o seleto grupo dos melhores treinadores do mundo. Ninguém duvida de que trabalhou, preparou-se, estudou e, aos 57 anos, atingiu o nível dos melhores. Mas falta-lhe um selo para entrar em um clube fechado onde estão sobrenomes como Guardiola, Conte, Klopp, Mourinho e Zidane. O Hexa, podem ficar certos, será esse selo.
Tudo se inicia no domingo, a partir das 15h, quando a noite já despontar no Sul da Rússia. Na novíssima Rostov Arena, o Brasil encara a Suíça no primeiro dos sete passos até o Hexa. É ali, na margem esquerda do Rio Don, que começamos a enterrar o trauma do Mineiraço e a escrever, cada um de nós, um novo capítulo do futebol brasileiro.