Após o Ministério Público Federal (MPF) emitir uma recomendação na terça-feira (19) para que a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) suspenda, de forma imediata, o processo de verificação de raça para cotistas, GaúchaZH ouviu quatro especialistas nesta quarta-feira (20) para obter avaliações a respeito da conduta da universidade. Todos demonstraram posição favorável à comissão especial, sob o argumento de que ela combate possíveis fraudes. No dia 8, a instituição de ensino anunciou que apenas 35 dentre 274 estudantes suspeitos de fraudarem as cotas foram declarados negros pela Comissão Especial de Verificação da Autodeclaração Racial.
A recomendação do MPF, elaborada pelo procurador da República Enrico Rodrigues de Freitas, também sugere que a UFRGS não faça qualquer verificação futura de forma "retroativa" com base nas características físicas dos alunos. Em entrevista ao GaúchaZH na terça, ele afirmou que a universidade errou no modo como avalia os estudantes e se equivocou ao alterar, de forma retroativa, as regras do vestibular de quando eles ingressaram na instituição.
— Antes de decidir (se defere ou indefere), a UFRGS deveria ter instaurado o devido processo legal e dado as razões de sua decisão para que a pessoa apresentasse a defesa. É o que diz a lei no processo administrativo. Além disso, os alunos entraram com o critério da autodeclaração. Só que, agora, a universidade criou um novo critério, de avaliação com base no fenótipo. Ela até pode fazer isso, mas a análise só pode ser feita daqui para a frente, não de forma retroativa.
Em entrevista na manhã de terça, o reitor da UFRGS, Rui Vicente Oppermann, afirmou que a administração não foi surpreendida pela recomendação do MPF, mas que entendeu "que foi uma posição muito dura". À tarde, a assessoria de imprensa informou que a universidade está estudando a recomendação do MPF e ainda não definiu que posição adotará.
Para o advogado Gerson Fischmann, especialista em direito civil e administrativo e ex-professor da PUCRS e da Unisinos, a universidade tem o direito de analisar cotistas de forma retroativa mesmo que não haja, no texto dos editais, a explicitação de que a raça do vestibulando fosse verificada por um terceiro. Ele ressalta que "não se pode respeitar um direito adquirido com base em uma fraude".
— É comum a instalação de comissões em universidades. Embora a regra tenha sido feita para efeitos de diplomas do Ensino Médio, ela tem efeitos maiores porque há, no direito, um princípio maior. Mas é claro que tem de ser observado o direito de defesa — diz.
Os editais de vestibular entre 2014 e 2017 trazem, em um dos pontos sobre as disposições gerais, uma condição imposta pela UFRGS por todos que aceitarem fazer parte do concurso: "A prestação de informação falsa pelo estudante, apurada posteriormente à matrícula, em procedimento que lhe assegure o contraditório e a ampla defesa, ensejará sua exclusão do quadro de alunos da instituição, sem prejuízo das eventuais sanções penais cabíveis". Em 2013, a frase tinha um tom levemente diferente. "O candidato poderá ter a inscrição no Concurso Vestibular ou a matrícula na Universidade canceladas a qualquer momento, além de estar sujeito a outras implicações legais em casos de fraude ou falsidade das informações declaradas".
Na visão de Aloísio Zimmer, doutor em Direito do Estado e ex-professor da Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe-RS), "os pontos dos editais se encaixam perfeitamente no caso das cotas" e a UFRGS tem o dever de checar os cotistas raciais para evitar fraudes. Acrescenta, ainda, que a instituição pode realizar a verificação nos últimos cinco anos com base na Lei Federal 9.784/1999, que regula o processo administrativo.
— O passo a passo clássico é a universidade notificar o estudante, descrevendo a irregularidade. Depois, ela abre prazo para que ele se defenda e, aí, há uma espécie de julgamento. Desse julgamento, cabe o recurso, sempre em instâncias superiores. Mas a universidade tem de explicitar suas razões para a decisão, e aqui concordo com o MPF. Ela precisa dizer por que decidiu o que decidiu, se foi a cor da pele, o nariz, o cabelo ou o porte — sustenta.
Para o antropólogo José Jorge de Carvalho, professor da Universidade de Brasília (UnB) e coordenador do Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCT) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a UFRGS está certa em criar as comissões, "uma tendência em universidades públicas brasileiras". Ele critica a recomendação do MPF.
— Se o MP quiser retirar a comissão de verificação, isso vai permitir que as pessoas mais inescrupulosas estejam livres para se apresentar como negras. Apesar de a lei não contemplar a existência dessas comissões em instituições públicas, fraudes existem. E a universidade tem o dever ético de barrá-las. Sou a favor da autodeclaração confrontada, inclusive com entrevista. Qualquer avaliação constrange, mas as comissões evitam fraude. Esses grupos de verificação não existem à toa, mas por um desejo de responsabilidade em relação às cotas — avalia.
O desembargador federal Roger Raupp Rios, pós-doutor pela Universidade de Paris II e especialista em direitos humanos, lembra que as comissões de aferição de autodeclaração ainda seguem em aperfeiçoamento no país. No contexto tupiniquim, as cotas raciais são um desafio devido à mistura de raças – no caso de pardos, o parecer pode não ser tão óbvio.
— A recomendação do MPF vem no esforço de fazer com que a implementação da política pública seja o mais efetivo e eficaz possível para todos, assim como da comissão da universidade. O objetivo da comissão é implantar de forma concreta as políticas de fomento à diversidade e de combate à discriminação. Na dúvida sobre a autodeclaração de alguém, é preciso haver um processo público aberto, com recurso — diz.