"Alfredo, nunca mais serei promovido. Morrerei trabalhando aqui, no almoxarifado. E devo isso a você", disse o alienígena, dentro de minha cabeça. Mesmo após dois séculos trabalhando para esses caras, eu ainda me sinto estranho com essa tal de telepatia. E, sim, sou imortal. Mas essa é uma outra história.
- Relaxa, vivente. Não vai dar nada - eu disse, olhando para o baixinho cinzento e cabeçudo de imensos olhos negros.
"Você precisava mesmo fazer aquilo? Era uma missão de reconhecimento, não de intervenção. Tudo o que você tinha de fazer era observar e relatar. Mas não. Você tinha de dar uma de bom samaritano."
- Tinha gente morrendo lá. Mulheres e crianças...
"Sua espécie está sempre sofrendo e morrendo em algum ponto do espaço-tempo. Se pararmos para ajudar todos os que estão em apuros, vocês acabarão como uns mimados inúteis."
- Não esquenta. Eu assumo a culpa diante do conselho. No máximo, pego 40 anos no almoxarifado - Respondi.
E assim foi. Fui sabatinado de tudo quanto é jeito. O "chefe" e o resto do conselho me passaram o xixi básico, mais uma ladainha sobre os perigos de se alterar a linha de tempo, blá, blá, blá. Quando todos foram embora, o chefe me segurou pelo braço.
- Cá entre nós - disse, em português, pois era o único que ainda usava cordas vocais - Como foi que você os realocou? Seu veículo não tem espaço para carregar um gerador de portal. Como conseguiu?
Eu encarei aquele rosto sem feições e respondi:
- Não, não tem mesmo. Aquela gente estava para ser exterminada. Bueno, pra começo de conversa, aborígines não são todos iguais. Aquele pessoal pertencia a um grupo minoritário e seriam extintos pelas tribos vizinhas se eu não fizesse algo. O sertão australiano pode ser muito ingrato. Imagina então como era há 13 mil anos...
- Alfredo, como vocês humanos costumam dizer, não enrola.
- Eu transferi a população toda usando a Cremilda (esse é o nome que eu dei ao meu "carango" espaço-temporal). Foi o maior carreto que eu já fiz.
- Isso é impossível! Cremilda só pode transportar uns 10, talvez 15 indivíduos
de cada vez.
- Eu sei. Por isso pedi a ajuda de versões futuras e passadas de mim mesmo. Contei uns três mil e quinhentos "eus".
Alguns deles eram bem esquisitões. Acho que um terço deles era de um universo paralelo onde o Chacrinha virou presidente. Posso ir agora? - Respondi, sorrindo amarelo.
O chefe me olhou de cima a baixo e respirou fundo. Suas minúsculas narinas vibravam como ventoinhas. Mesmo pra mim, que sou meio tosco em avaliar as emoções dos outros, dava para ver que ele estava surtando.
- Como você sabia que daria certo? Como sabia que eles sobreviveriam e se miscigenariam com os indígenas sul-americanos?
- Eu não sabia. Só fui lá e fiz.
- Obrigado por sua honestidade.
- Disponha.
- E mais uma coisa, Alfredo.
- Fala, tchê.
- Você passará os próximos 80 anos no almoxarifado, sem participar de missões de campo.
- Oigalê que me caiu os butiá do bolso! Sem trauma patrão. Eu entendo. Posso ao menos ouvir Gildo de Freitas durante o expediente?
- Não.
No futuro serei mais cuidadoso. Se descobrirem que fui padrinho do noivo no primeiro casamento de um neandertal com uma humana, as coisas podem ficar bem estranhas pro meu lado...
...
Gilson Luis da Cunha é doutor em genética e biologia molecular pela UFRGS e pós-doutorando em Diversidade Cultural e Inclusão Social na Feevale.
O texto acima foi inspirado livremente reportagem de capa da edição de agosto do Planeta Ciência.