Entro mais uma vez no trem lotado. Faço isso todos os dias para ir ao trabalho. As pessoas se empurram para conseguir espaço. Antes de nos acomodar, o transporte dá a partida. Fico em pé, próximo a uma janela. No céu posso ver a escuridão densa, cinza, provocada pela poluição. Rente aos trilhos, por toda a extensão, um muro alto, repleto de pichações, grafites e pequenas televisões embutidas nos tijolos mostrando conteúdo publicitário. Somos bombardeados pelos produtos das empresas mais famosas, somos incitados ao consumo desenfreado enquanto o trem se arrasta para que possamos pensar qual será nossa próxima compra.
Relaxo somente quando chegamos ao novo trecho. Para dar algum alento e um pouco de ilusão ao povo, a federação começou a instalar telões pela cidade. Agora podemos ver imagens bem reais ao longo da principal via percorrida pelo sucateado trem. O muro dá lugar a uma tela em HD de mais de cinco quilômetros de extensão. Tenho certeza de que nenhum de nós aqui nessa lata de sardinha já viu a natureza como ela realmente fora. Podemos acompanhar sua beleza quase extinta pelo vidro luminoso. Primeiro vemos o que chamam de Mata Atlântica, dizem que ocupava boa parte do litoral brasileiro. Em seguida o Pantanal e suas maravilhas já comprometidas. Exclamamos um oh todos os dias ao avistar a onça saindo de trás de uma árvore. Nessa hora arrumo a minha máscara acoplada a um tubo de ar para respirar melhor. Lembro que tenho de passar no supermercado para comprar oxigênio. Compro sempre o mais barato. Não ajuda muito, mas já é alguma coisa. Conheci pessoas que não usavam máscaras e acabaram definhando, depois morrendo antes dos trinta anos. Mas existe uma esperança, o governo disse que vai diminuir em 25% a emissão de gases tóxicos antes de 2027.
Chegamos ao fim do trajeto. Boa parte do muro está derrubada. Vemos operários o reconstruindo. O governo diz que a queda se dera em função de um tremor de terra. Porém, ouvi um rumor pelas ruas que se tratava de um ato de um novo grupo de rebeldes. Os sujeitos teriam implodido o muro com o objetivo de deixar à mostra o que evitamos, a todo o custo, ver no dia a dia. Fecho os olhos, não é fácil olhar para a realidade. Não gosto de encarar a pobreza, os miseráveis, a montanha de sucata e lixo que se acumula diante de mim. Abro os olhos de novo somente quando tenho de sair do trem.
Duda Falcão é escritor (autor do romance Protetores e do livro de contos Mausoléu), editor da Argonautas Editora e professor universitário.
O conto acima é baseado na notícia (falsa) de que TVs foram instaladas em Pequim para mostrar o nascer do sol aos moradores da capital chinesa, onde o ar altamente poluído impediria a apreciação do Astro-Rei. O boato "viralizou", difundido por periódicos como o britânico Daily Mail e a americana Time. Na verdade, as telas não tinham nada a ver com poluição, e sim com um anúncio de turismo na província de Shandong, que passa todos os dias em Pequim, faça chuva ou faça sol.