
Nono país que mais envia alunos para estudarem em universidades norte-americanas, o Brasil sentirá impacto com a interferência promovida pelo presidente dos EUA, Donald Trump, em instituições de referência como Harvard e Columbia. Especialistas projetam que medidas como o condicionamento de repasses federais a uma série de medidas estabelecidas pela Casa Branca causarão redução nas oportunidades de acesso de estudantes e professores brasileiros, bem como uma incerteza sobre pesquisas.
Segundo Cícero Krupp, professor do curso de Relações Internacionais da Escola de Humanidades da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), já está sendo percebida, nos Estados Unidos, uma diminuição no número de vagas em doutorado em praticamente todas as universidades e setores. Essa redução, somada ao corte de fundings, que consistem em bolsas e outros financiamentos que permitem a permanência do estudante naquela instituição, terão como reflexo uma menor presença de brasileiros no país.
— Mesmo que o governo brasileiro siga investindo em bolsas, vai haver menos brasileiros tendo oportunidades, porque haverá uma escassez cada vez maior de vagas. No momento em que se diminui o Fulbright, que é um programa do governo americano muito importante de bolsas de PhD, ele diminui para o Brasil e para todos os lugares do mundo. Então, os brasileiros vão ter que competir em outros países com, por exemplo, indianos e chineses que estavam nos Estados Unidos e agora vão ter que se recolocar.
Nos últimos meses, o docente afirma que houve aumento de inscrições, por brasileiros, em universidades da China, do Canadá e de países da Europa. Em 2024, conforme o relatório Open Doors – censo de educação internacional elaborado pelo Departamento de Estado norte-americano –, 16.877 pessoas do Brasil estudavam nos EUA, deixando o país na nona colocação. Índia e China lideravam a lista.
É uma escalada que vai desde o ponto de vista financeiro até o de você poder entrar e estar no país. Tem uma série de pessoas muito preocupadas, e com razão.
CÍCERO KRUPP
Professor da Unisinos
Outro impacto é no financiamento de pesquisas realizadas no Brasil, que, com frequência, vêm de instituições estrangeiras. Com a redução de recursos destinados pelo governo dos EUA, a tendência é que universidades de lá passem a concorrer com as brasileiras por verbas da Europa, por exemplo, o que fará com que menos dinheiro chegue aos projetos nacionais.
Krupp cita a ameaça de revogar vistos de estudantes. Até a semana passada, o governo Trump já havia revogado a autorização de permanência de mais de mil universitários e recém-graduados internacionais.
— Foi colocado de maneira explícita que se não concordassem com os termos, estudantes estrangeiros não poderiam se matricular. É uma escalada que vai desde o ponto de vista financeiro até o de você poder entrar e estar no país. Tem uma série de pessoas muito preocupadas, e com razão: pessoas que têm filhos ou parentes que podem, a qualquer momento, ter o visto cancelado. Isso não é um ambiente acadêmico saudável — avalia o professor.
História em descompasso
Para Marçal de Menezes Paredes, professor dos cursos de História e Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), se desde a sua independência o poder nos EUA vem do povo, o que Trump está fazendo é “rasgar isso e fazer com que o país retroceda para um cenário que nunca teve, de uma ditadura unilateral, personalista e que impõe uma agenda sem discussão e nem possibilidade de contraditório”.
— É gravíssimo o que está acontecendo. Eu já sei de alguns casos de professores e estudantes brasileiros que passaram pelos vários processos de seleção de bolsas internacionais, receberam a aprovação de uma viagem internacional para os Estados Unidos e, agora, o governo norte-americano começa a fiscalizar os candidatos nome a nome. Se, eventualmente, descobre nas redes sociais alguém que tenha criticado, por exemplo, a aceleração da extrema-direita no mundo ou alguma postura dos EUA, essa pessoa acaba sendo marcada, barrada e todo o processo cai — relata Paredes.
Sei de alguns casos de professores e estudantes brasileiros que passaram pelos vários processos de seleção de bolsas internacionais, receberam a aprovação de uma viagem internacional para os Estados Unidos e, agora, o governo norte-americano começa a fiscalizar os candidatos nome a nome.
MARÇAL DE MENEZES PAREDES
Professor da PUCRS
O pesquisador reitera que, ainda que as universidades afetadas sejam privadas, elas contam com contribuições “importantíssimas” de recursos do governo federal, que possuem agências de fomento com equipes que têm “formação específica, qualificação e experiência”, e que “conseguem sopesar, equilibrar e julgar de maneira neutra projetos que incrementam a discussão dos assuntos da sociedade”. No seu entendimento, esse é o papel da universidade e da ciência.
Tensão com universidades
Desde que reassumiu a presidência, Trump tem tomado medidas como o bloqueio de financiamentos e a interferência na gestão de universidades de renome como Harvard, Columbia, Princeton, Johns Hopkins e Universidade da Pensilvânia.

O governo aponta para uma “postura antissemita” dessas instituições e condiciona recursos à obediência de uma série de exigências ligadas a temas como políticas de diversidade, critérios de admissão e liberdade de expressão. Harvard sofreu um congelamento de US$ 2,2 bilhões em verbas previstas.
O que o governo Trump faz é apagar as diferenças dentro dos vários posicionamentos em torno da Palestina e de Israel, cristaliza isso, torna um assunto do bem contra o mal e dá a aparência de ser um assunto quase como se fosse exclusivamente religioso ou ideológico, do certo contra o errado.
MARÇAL DE MENEZES PAREDES
Professor da PUCRS
Para Paredes, há um equívoco na maneira como Trump entende as manifestações em universidades ligadas ao conflito no Oriente Médio.
— Não existe um posicionamento cristalizado dos estudantes pró-palestina ou dos imigrantes ou das famílias judias pró-Israel: existem posicionamentos políticos diferentes no Estado do Israel, como também existem posicionamentos políticos no amplo cenário das alianças a favor do caso palestino. O que o governo Trump faz é apagar as diferenças dentro dos vários posicionamentos em torno da Palestina e de Israel, cristaliza isso, torna um assunto do bem contra o mal e dá a aparência de ser um assunto quase como se fosse exclusivamente religioso ou ideológico, do certo contra o errado — salienta.
Uma carta aberta de mais de 180 reitores e presidentes de universidades dos EUA condenou o que chama de escalada de interferência política sobre as instituições de ensino. A nota acusa a gestão republicana de colocar em risco a autonomia e a integridade do sistema acadêmico norte-americano.