
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva é uma renomada educadora, pesquisadora e ativista, sendo uma das principais referências em Educação para as Relações Étnico-Raciais. Sua trajetória é marcada pela luta contra o racismo e pela promoção de uma educação inclusiva, contribuindo com políticas públicas educacionais.
Nascida na antiga Colônia Africana, em Porto Alegre, a gaúcha de 84 anos foi a primeira mulher negra a integrar a Câmara Superior do Conselho Nacional de Educação, em 2002.
Ela também foi relatora das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Embora tenha passado anos lecionando na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), onde foi contemplada com o título de professora emérita, toda sua formação foi no RS.
É licenciada em Letras e Francês (1964) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, possui mestrado em Educação (1979) e é doutora em Ciências Humanas – Educação (1987) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 2024, recebeu da instituição o título de Doutora Honoris Causa.
O Ministério da Educação lançou este ano o Selo Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva de Educação para as Relações Étnico-Raciais. A iniciativa reconhece secretarias de educação que se destacam por políticas voltadas à formação de profissionais para a implementação da lei 10.639. Em março, foi lançado “Africanidades brasileiras: o legado de Petronilha Beatriz”, livro em sua homenagem.
Confira a entrevista:
Você é referência na luta por uma educação antirracista e na valorização da cultura afro-brasileira. Qual o impacto do racismo na educação?
Atualmente, eu não estou em sala de aula, mas acredito que o impacto continue sendo o mesmo, no sentido de dificultar o respeito e o reconhecimento de distintas maneiras de se formar uma pessoa. É claro que a situação melhorou. Hoje, em muitas situações, as pessoas são mais atentas e respeitosas. Mas nem sempre.
Porque muitas pessoas entendem que na medida em que os grupos sociais e étnico-raciais tidos como mais pobres, como negros e indígenas, têm acesso a mais estudos, melhores condições de educação, algumas pessoas que pertenciam às classes até então privilegiadas, agem como se tivessem medo de perder o seu status, porque outros estariam tomando conta.
O racismo, como qualquer outro tipo de discriminação, é a falta de vontade de compreender distintas maneiras de ser, de viver, de pensar e de construir a sociedade.
PETRONILHA BEATRIZ GONÇALVES E SILVA
Não é isso que a educação das relações étnico-raciais prevê. Prevê que as pessoas distintas, diferentes no seu modo de ser, de pensar a sociedade, têm que se juntar para construir o comum, e não ficar disputando quem vai ser o mais importante, o mais bonito ou o mais inteligente.
Essa disputa foi instalada desde que chegaram os portugueses aqui e começaram a brigar e tomar posse do que pertence aos indígenas, desde o território até as riquezas.
Recentemente, as principais políticas voltadas à Educação das Relações Étnico-Raciais completaram 20 anos. Qual a importância dessas diretrizes?
Essa política foi sendo construída pelo movimento negro, por grupos de pessoas negras e também por professoras do curso primário. Especialmente as professoras negras, mas não unicamente, também as aliadas. Embora se falasse.
Provavelmente não se falava, à maneira de hoje, de políticas. Mas as professoras, com o seu ensino, sua forma de se relacionar com os seus alunos e estabelecer as relações entre eles, mostravam um projeto de sociedade. Que sociedade a gente queria? Queria que se continuasse com aquela sociedade herdada do regime escravista, uma sociedade racista?
Tudo se trata de um projeto de sociedade. Cada um de nós batalha por um projeto de sociedade, mesmo quando a gente não está pensando nisso. Mas a forma como eu te olho, por exemplo, demonstra o meu projeto de sociedade. Evidentemente, aqueles erros do período escravista ainda não foram de todo vencidos. Mas boa parte do que se tem vencido se deveram, principalmente, às professoras dos anos iniciais, principalmente.
E quais problemas persistem no ensino, 20 anos depois?
O que precisa ser feito é a gente se educar. Se educar para conviver com outras formas de ser pessoa, de projetar a sociedade, de conviver. E não é fácil. Numa mesma família, as pessoas não pensam de forma igual. O pai, a mãe, os filhos, os primos. Todo mundo pensa diferente numa família, mas todo mundo convive.
Que os diferentes sejam capazes de dialogar, não para abandonar os seus princípios. Mas para juntos construir a sociedade.
PETRONILHA BEATRIZ GONÇALVES E SILVA
Não no sentido de se suportar, mas convive no sentido de construir o que é comum. De viver juntos na construção de uma sociedade. Isso é um processo de educação, e que é interminável. Quando digo interminável, quer dizer que a gente vai partir desta ainda nesse processo. Cada um de nós é uma pessoa diferente das outras pessoas.
Por mais parecidos que sejamos na forma de pensar, na forma de comer, na forma de estar junto. Nós não somos iguais. E é justamente no convívio das diferenças, dos diferentes significados, que a gente pode construir o comum.
Todos nós fomos capazes de viver e conviver com as pessoas que têm modos distintos de construir a própria vida, de pensar, de pensar a sociedade e de dialogar. Que os diferentes sejam capazes de dialogar, não para abandonar os seus princípios. Mas para juntos construir a sociedade.
É isso que a educação das relações étnico-raciais prevê. É buscar compreender as distintas maneiras de ser uma pessoa e de se construir enquanto pessoa, o que só é possível no convívio com as outras pessoas.
O RS tem a fama de ser o Estado mais racista do país. Qual sua opinião sobre isso?
Eu acho que é difícil de medir quem é mais ou quem é menos racista. O que eu posso dizer é que o racismo, como qualquer outro tipo de discriminação, é a falta de vontade de compreender distintas maneiras de ser, de viver, de pensar e de construir a sociedade.
Essa dificuldade é que torna o convívio, às vezes, impossível. E isso a gente aprende dentro da própria família. Ou aprende a respeitar quem não é igual, ou aprende a rejeitar quem não é igual.
O que a educação das relações étnico-raciais prevê é que a gente consiga pôr em diálogo os distintos, os diferentes. Mas uma coisa que deixou o racismo bastante evidente, não só aqui, foi a Lei de Cotas. A lei escancarou o racismo. Houve uma reação muito contundente de pessoas que achavam inaceitável.
À medida que a população negra passou a concorrer com igualdade, em algumas situações, as pessoas não se constrangeram em manifestar o seu racismo. Ou não se constrangem até hoje, até na forma de olhar.
Até hoje você mora no bairro Rio Branco, onde ficava a antiga Colônia Africana. Qual é sua relação com o bairro?
É o bairro onde eu nasci e me criei. Nasci em 1942. A Colônia Africana foi se formando no período pós-abolição, quando alguns dos ex-escravizados que tinham recurso financeiro compraram terrenos para construir as suas casas. Foram meus bisavós maternos que encontraram aquele terreno. Então, tenho muito orgulho de permanecer nesse local. Ainda tem quatro famílias negras que se mantêm no bairro.
Depois, mais tarde, começam a vir migrantes que fugiram das guerras na Europa, que chegavam aqui via Uruguai ou Argentina, e foram morar nos bairros negros. Em todas as cidades isso acontece, os migrantes vão para os bairros mais acolhedores.
Em geral, o pobre é acolhedor, né? E se formam, então, estes bairros. Por exemplo, os judeus que vieram lá no período da Segunda Guerra, muitos foram para o Rio Branco. Muitos procuravam a minha mãe, que frequentava o curso normal, para aprender português com ela.
Sua mãe era professora? Foi ela que te incentivou a seguir esse caminho na educação?
Eu fui educada num bairro negro, numa família negra, em que a gente vivia e analisava as relações raciais. Eu fui educada neste meio, e para me impor neste meio. No sentido de estar presente e segura daquilo que eu quisesse ou desejasse fazer, uma vez que eu tinha a formação.
De um lado, minha mãe era professora. Ela também dava aula particular em casa. De outro lado, ela me dizia o seguinte: moça pobre primeiro é professora, depois, pode ser o que quiser. Quando eu fiz o exame de admissão no Instituto de Educação, um pouco antes de começarem as aulas eles me chamaram. Naquela época, a gente recebia uma espécie de boletim do exame. Lembro da minha mãe ver o boletim. Ela pensou que tinha erro.
Aí, recebemos a notícia de que abririam um novo colégio, o Colégio de Aplicação, ali na Faculdade de Filosofia (da UFRGS). Então, ela me deixou uns 10 dias pensando. É claro que eu sabia que ela preferia que eu fosse professora, mas ela me deixou decidir. E não me arrependo dessa decisão.