
Procurador do Ministério Público Federal (MPF) lotado no Espírito Santo, Alexandre Senra é coordenador do Grupo de Apoio de Criptoativos, especializado na investigação de delitos envolvendo moedas virtuais. A célula liderada por ele é institucional, dedicada a disseminar conhecimento e auxílio técnico em investigações de abrangência nacional do MPF sobre criptomoedas.
Em entrevista a Zero Hora, Senra aborda os caminhos da investigação no ambiente das moedas virtuais, da responsabilização criminal e da perseguição de patrimônio para o ressarcimento de vítimas.
Leia a entrevista com Alexandre Senra:
As pirâmides estão entre os delitos que mais fazem vítimas envolvendo criptomoedas?
Com certeza. É um golpe que ainda causa dezenas ou centenas de milhares de vítimas. Isso é próprio de momentos de euforia do mercado. Quando a gente fala que o Bitcoin (tipo de moeda digital) está batendo novas máximas históricas, a consequência natural disso é que as pessoas passem a se interessar mais por um ativo que elas não conhecem. Quando você conjuga euforia com desconhecimento, é uma tremenda fórmula para as pessoas serem vítimas de golpes.
Como identificar uma pirâmide financeira? Em geral, elas crescem a partir de promessas de grandes lucros em pouco tempo, certo?
Se é bom demais para ser verdade, não é verdade. É natural uma pessoa ter a percepção de que é o outro que não está enxergando a grande oportunidade. As pessoas vão dizer: "Mas estão pagando". É óbvio que estão pagando. A pirâmide só cresce porque paga no início.
O problema não está naquilo que você já recebeu, mas naquilo que você ainda não recebeu. O mais seguro é as pessoas investirem naquilo que entendem. Não acho que todo mundo precise saber sobre cripto e blockchain (livro digital onde são registradas as operações com criptoativos), mas, se você vai expor parcela significativa do seu patrimônio, é de bom tom entender onde está se metendo.
É difícil para o poder público interferir com investigação em uma pirâmide financeira antes de ela desmoronar sozinha?
Enquanto a pirâmide não quebra, o desafio que temos é o seguinte: as vítimas se perceberem enquanto vítimas. Como isso é um problema de contabilidade interna do modelo de negócio, a pessoa diz: "Quem está dizendo que o meu negócio não para de pé? Quem disse que não daria certo se o poder público não tivesse feito intervenção?" É um problema sério com o qual as autoridades têm de lidar.
Quando uma pirâmide para de pagar e as vítimas resistem a acreditar, não é porque começou a dar problema. É porque já estão num estágio tão inviável que não sobrou dinheiro nem para os pagamentos periódicos. No final, a pergunta que as vítimas mais fazem é se conseguirão ser ressarcidas. A resposta, na maioria das vezes, é a indesejada: não existe patrimônio para ressarcir todo mundo. Para a vítima, é secundário se alguém vai ser criminalizado depois.
Ao contrário do que se imagina, as operações de criptoativos não são totalmente ocultas. A partir dos registros no blockchain, uma investigação criminal pode descobrir quem está por trás de determinada conta ou movimentação?
Temos de separar duas coisas. Uma é a identificação da autoria de um crime. Para uma responsabilização criminal, eu preciso identificar o autor. Outro aspecto, que diz respeito ao ressarcimento de vítimas, é a persecução patrimonial. Para eu conseguir um reembolso, pelo menos parcial, das vítimas, eu não preciso identificar o CPF dos golpistas. Eu preciso identificar o patrimônio deles.
O blockchain é um livro com algumas características. Uma delas é ser público. Qualquer pessoa pode abrir e ler tudo. Outra característica: ele é pseudônimo. Não é anônimo. Eu abro e consigo ver tudo o que foi movimentado, só que as contas não são identificadas pelo CPF e nome das pessoas. As contas são identificadas por uma sequência alfanumérica chamada de endereço público. Eu consigo olhar para esse livro e falar: "Eu não sei quem aplicou o golpe nessas vítimas, mas eu sei que quem aplicou o golpe é a pessoa responsável pela conta representada por essa sequência alfanumérica".
Isso faz toda a diferença porque, se eu encontrar ativos na conta, posso garantir o congelamento deles, o ressarcimento parcial das vítimas, mesmo que eu não saiba o CPF por trás da conta. Os lançamentos no blockchain são imutáveis. As transações não podem ser apagadas. O que muda ao longo do tempo são as ferramentas disponíveis para tratar os dados e traduzir em informações úteis.

Criminosos que exigem pagamentos em criptomoedas podem sacar valores em moeda tradicional nas corretoras, as exchanges. Essas empresas colaboram com investigações? É possível bloquear saques?
Em geral, as exchanges colaboram. Em muitas exchanges, quando você vai abrir uma conta, precisa fornecer uma documentação. Cópia da carteira de habilitação, uma selfie, uma ficha com assinatura. São dados que podem ser requeridos pelas autoridades. Muitos fazem a objeção: "O golpista vai abrir uma conta em nome dele numa exchange?" Novamente, é importante separar a responsabilização criminal e a persecução patrimonial.
A maioria das exchanges fica no exterior? Isso pode atrapalhar uma investigação?
É muito comum a associação de que exchanges nacionais colaboram e as estrangeiras, não. Isso não é verdade. A origem dessa incompreensão é uma instrução da Receita Federal que criou uma obrigação para as exchanges domiciliadas para fins tributários no Brasil. Todos os meses, elas reportam à Receita Federal as movimentações do mês anterior. As estrangeiras não reportam porque não estão obrigadas ao cumprimento da instrução. Mas, se houver determinação ou solicitação do poder público, a maioria das exchanges estrangeiras colabora.
Os investigadores terão de aperfeiçoar o olhar ao fazer uma busca e apreensão? Será preciso saber o que procurar para localizar provas relacionadas a criptomoedas?
Já é preciso. O Ministério Público Federal, em 2021, criou o Grupo de Trabalho de Criptoativos. Em 2023, ele foi convertido em Grupo de Apoio de Criptoativos. A primeira missão do grupo de trabalho era fazer um roteiro de atuação que abrangesse busca, apreensão, custódia e venda de criptoativos.
No primeiro momento, concluiu-se que a necessidade mais urgente era o nivelamento do conhecimento na instituição. A gente precisava que todo mundo entendesse os fundamentos da tecnologia. Em 2023, satisfeito o primeiro objetivo, concluiu-se que a nova prioridade era ter um grupo de apoio especializado para prestar auxílio técnico aos colegas do MPF em investigações de criptoativos. É o que temos feito.
Como funciona o Grupo de Apoio de Criptoativos do MPF?
É formado por cinco membros e tem âmbito nacional. A gente não atua diretamente no processo. Sempre nos reportamos ao procurador do caso que nos demanda. A premissa da constituição do grupo é que não faz sentido sermos todos especialistas no assunto. Não é razoável que os profissionais do direito parem suas vidas por meses ou anos só para estudar os aspectos técnicos de criptoativos. Por isso, foi importante a especialização.
Temos no grupo de apoio a responsabilidade de nos mantermos atualizados. Produzimos notas técnicas aos procuradores da República e o roteiro de atuação em criptoativos, que está disponível para download.
Ampliar a regulamentação do mercado de criptomoedas seria bem-vindo?
Por muito tempo, se achou que cripto era terra de ninguém. Não é verdade. O crime de estelionato cometido com ativos virtuais sempre foi crime de estelionato. Estelionato é obter vantagem indevida, em prejuízo alheio, mediante fraude. Pouco importa se você está fazendo uso de bois, avestruzes ou Bitcoin. É estelionato igual.
O que começou a surgir no Brasil, de 2019 para cá, é uma regulamentação específica do setor, mas que ainda é insuficiente. É difícil dizer se é bom ou ruim uma regulamentação mais extensa. Depende do conteúdo. Hoje, a maior pendência que temos é a regulamentação, por parte do Banco Central, da lei conhecida como Marco Legal dos Criptoativos no Brasil.
Existem leis modernas no Brasil para a investigação de criptoativos?
Gosto de analisar em termos comparativos. Podemos avançar muito, mas, comparando com outros países, o Brasil está muito bem. Quando falamos em regulamentação específica, temos a instrução normativa de 2019, o Marco Legal dos Criptoativos, a Lei das Offshores e as respostas da Receita Federal às solicitações de consultas. Tem muita coisa elaborada em termos normativos.
No futuro, será possível uma migração maior para o mercado de criptomoedas a ponto de fragilizar o sistema financeiro nacional e as moedas oficiais, como o Real?
É muito provável que isso aconteça. Mas fragilizar em qual sentido? Eu tomo fragilizar no sentido de uma troca: as pessoas começarem a sair do sistema financeiro tradicional para o de cripto. Isso já está acontecendo. Os criptoativos tendem a se popularizar.