Ainda que a previsão inicial de retorno dos voos para passageiros, fixada para dezembro, seja abreviada, e que o terminal de cargas esteja reaberto desde esta terça-feira (11) para a armazenagem de produtos, o transporte de cargas no Aeroporto Salgado Filho não deverá ser retomado este ano. Isso acontece, conforme avaliam especialistas, porque dos 3,2 km de pista existentes em Porto Alegre, a expectativa da empresa concessionária, Fraport, é ter apenas 2,7 km liberados para uso em até seis meses após o alagamento de maio.
Segundo declarou a CEO da Fraport Brasil, Andreea Pal, em entrevista à Rádio Gaúcha, na semana passada, mesmo que os danos no asfalto (em fase de avaliação) sejam os menores possíveis, é inviável restaurar a operação na extensão total, necessária para permitir pousos e decolagens dos aviões de maior porte, antes de outubro.
Essa projeção exclui, por consequência, os voos internacionais e também a movimentação de cargas aéreas em Porto Alegre. O fato interrompe o processo de evolução gradual do modal para mercadorias, que teve início em 2018, com o início do atual contrato de concessão, e isola o Rio Grande do Sul de alguns relevantes parceiros comerciais, localizados sobretudo em países da Europa, da América Central e da América do Sul.
Até o fechamento de abril, o terminal havia movimentado 11,4 mil toneladas em mercadorias, conforme dados da Fraport. Significa que somente os quatro primeiros meses de 2024 equivalem a quase um terço (29,1%) do total registrado em 2023, quando a soma dos embarques e desembarques domésticos e internacionais de itens, em Porto Alegre, atingiu a marca de 38,8 mil toneladas. Trata-se do maior volume registrado desde a retomada do transporte aéreo de cargas no Salgado Filho, há seis anos. E esse resultado é fruto de um incremento de 45%, ou, 12,1 mil toneladas a mais do que as 26,7 mil toneladas apuradas em 2022.
Ex-diretor da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e da Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (Agergs), Luiz Afonso Senna também é membro do Grupo Temático de Transportes e Logística do Conselho de Infraestrutura da Federação das Indústrias do RS (Fiergs) e resume o significado da atual situação para a economia do Estado:
— O próprio PIB vai se ressentir em relação a isso. Há uma frase que explica os módulos de transporte e parece emblemática nesse momento e diz que há modais que transportam produtos de baixo valor agregado e outros de alto valor. É o caso do caso do aeroporto que está no topo da cadeia, porque só transporta produtos de alto valor agregado. Em uma sociedade como a gaúcha, que tem o objetivo de produzir mais produtos de alto valor agregado para diversificar a economia e reduzir a dependência do setor primário (agropecuária), os efeitos tendem a ser ampliados.
Negociação entre governo e concessionária pode acelerar processos
Na avaliação do presidente da Câmara Brasileira de Logística e Infraestrutura e CEO do Grupo Intelog, Paulo Menzel, apesar da urgência, é preciso respeitar prazos e procedimentos. E, segundo ele, isso exigirá muita calma, conhecimento, técnica e engenharia.
Por outro lado, comenta, que a única maneira de acelerar os processos está associada à postura dos governos, particularmente, nesse caso, o governo federal, que é o poder concedente da concessão de uso do aeroporto ao prestador de serviços, que é a Fraport.
Isso ocorre, porque diferentemente do que acontece no caso dos passageiros, em que operações na Base Área de Canoas e alguns aeroportos regionais mantém as operações para suprir uma demanda mínima, nas cargas, não há solução paliativa possível.
— Antes da Fraport, essa carga ia praticamente 100% via rodoviária até Guarulhos (SP) e Viracopos (SP), para de lá voar para o mundo. Então, nós precisamos retomar os voos cargueiros, a carga existe, é apenas o sistema aéreo que precisa ser recomposto e isso depende mais da vontade do Governo, que terá de arcar com os custos do que de culpabilizar a concessionária — pondera Menzel.
Anac espera por levantamento para acertar o reequilíbrio financeiro
Por nota, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) informa que o governo federal já iniciou as discussões para o cálculo do reequilíbrio econômico-financeiro devido à concessionária Fraport, considerando o caráter de caso fortuito (força maior) da ocorrência no Salgado Filho. Segundo o texto, obviamente, os valores envolvidos só serão conhecidos após a contabilização dos prejuízos causados pelo alagamento do aeroporto, o que ainda está sendo avaliado:
“Contudo, de antemão, já se sabe que serão deduzidas as questões securitárias do valor final encontrado, que incluirá os prejuízos causados pelas enchentes e os custos da reconstrução do aeroporto. O Tribunal de Contas da União está envolvido nessas tratativas. Independentemente dos valores definitivos para a recomposição das perdas com a inundação do complexo aeroportuário, a Fraport Brasil faz jus ao ressarcimento de R$ 291,7 milhões por perdas causadas pela pandemia de covid-19 nos anos de 2020, 2021, 2022 e 2023, valores estes já reconhecidos pelo poder concedente e ainda não quitados.”
Entenda a origem do problema
- Há dois anos em 25 de maio de 2022 uma extensão de 920 metros da pista do Aeroporto Salgado Filho, que até então contava com 2.280 metros (2,2 quilômetros) era inaugurada em Porto Alegre.
- As obras tiveram início em 2018, quando a Fraport assumiu a concessão, mas a movimentação para a transferências de milhares de moradoras das vilas Dique e Nazareth começaram em 2012, após Porto Alegre ter sido escolhida cidade-sede da Copa do Mundo de 2014, o que demandou pacote de obras logísticas e de mobilidade urbana.
- Depois de, pelo menos, uma década de movimentações em torno do projeto, a conclusão da extensão da pista corrigiu um gargalo histórico do Estado, que, antes, precisava transportar muitos produtos pelas estradas até o Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, de onde os itens eram redistribuídos aos destinos domésticos e internacionais.
- Além das remoções de famílias, outro motivo para a demora foi a necessidade de complementar a infraestrutura, justamente, com depósitos de água para drenagem, que equivalem a mais de 400 piscinas olímpicas e até o momento do rompimento do dique da Sertório, em 4 de maio, barravam a invasão da água da enchente no aeroporto.
- Com a obra concluída, o Salgado Filho passou a receber aeronaves que comportam até 397 toneladas, na soma entre carga, passageiros e o próprio peso do avião.
- Com isso, já em 2022 (a pista foi inaugurada em maio daquele ano), a movimentação de cargas e mercadorias, aumentou em quase 5% – de 25,4 mil toneladas, em 2021, para 26,7 mil toneladas no fechamento do ano da inauguração da pista.
- No primeiro ano cheio com operações da pista de 3,2 quilômetros, o volume de cargas saltou 45% – de 26,7 mil toneladas, em 2022, para 38,8 mil toneladas, no ano passado, o recorde da série histórica
A relevância econômica do Aeroporto
- Da ocupação hoteleira em Porto Alegre antes da enchente, em média, 60% dos hóspedes chegavam à Capital via aérea. Na Serra, esse índice sobe para 70%, apontam os dados do Sindicato de Hospedagem e Alimentação (Sindha).
- Sem o aeroporto em fluxo normal, os hoteleiros preveem médias de ocupação muito baixas, uma vez que 37 hotéis tiveram que fechar as portas porque ficaram alagados e mais de 20 ainda não sabem quando voltarão a atuar.
- Além dos efeitos negativos para o turismo, o professor e ex-diretor da ANTT e Agergs, Luiz Afonso Senna lembra que hubs de saúde instalados em Porto Alegre, terão prejuízos, sobretudo, os hospitais de maior tecnologia
- Grandes empresas e negócios do Estado necessitam do aeroporto para se “comunicar” com o restante do país. “Tudo que for alto valor agregado, passa pelo aeroporto”, inclusive os profissionais, sobretudo, os ligados ao hub de tecnologia, afirma Luiz Senna.
- A decisão de investimentos futuros também é impactada. Um exemplo recente de quando o Salgado Filho não contava com voos de carga foi a perda de uma fábrica da Dell, que optou por abandonar o projeto no Rio Grande do Sul para instalar-se em Campinas (SP), onde o Aeroporto de Viracopos já operava mercadorias.