O debate sobre a alíquota do ICMS sobre combustíveis vem de longe. E as declarações do governador Eduardo Leite sobre o caráter essencial da gasolina, em específico, encontram amparo em um dos pontos que permanece em aberto e cuja falta de regulamentação gera insegurança, não apenas para a gestão fiscal dos governos estaduais, mas também para os municípios, os contribuintes e o setor produtivo.
Para entender o contexto, resgata o advogado, economista e professor universitário Manoel Gustavo Neubarth Trindade, é preciso retornar ao mês de junho do ano passado, quando os projetos de lei complementar 194/2022 e 192/2022 foram aprovados no Congresso. O primeiro incluiu os combustíveis na lista de itens considerados essenciais, previstos na lei feral do ICMS, que regra a essência dessa cobrança nos Estados. O segundo uniformizou as alíquotas em 17%.
Naquele momento já havia entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de que a atribuição de essencialidade seria válida para energia elétrica e comunicações. Com base na Constituição Federal, um item considerado essencial não pode ser alvo de alíquota majorada de tributos, como ocorria em muitas unidades da federação, dentre elas, o Rio Grande do Sul.
Em paralelo à aprovação da lei 194, o então presidente da república, Jair Bolsonaro – interessado em conter uma sequência de aumentos do produto nos postos e os efeitos inflacionários correlatos – ingressou com uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito) que demandava incluir os combustíveis na classificação que obrigaria os Estados a reduzirem as alíquotas.
Os governadores, por sua vez, protocolaram uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) questionando a validade da lei 194, que entraria em vigor em julho do ano passado, controlaria as remarcações de preço dos combustíveis ao custo de uma perda bilionária de arrecadação para os Estados. O principal argumento era de que, segundo a Constituição, a definição do percentual do ICMS seria de competência exclusiva dos Estados.
O STF sopesou aspectos constitucionais com efeitos fiscais e definiu que o tema deveria ser objeto de uma tentativa de acordo entre a União e os entes da federação. Isso ocorreu no final do ano passado, quando foi decidido e homologado, por unanimidade, na corte que a regulamentação da pauta ficaria dentro com o Poder Legislativo, nesse caso, o Congresso Nacional.
Entre os pontos acertados, estava a manutenção da essencialidade do diesel, do gás natural e do gás de cozinha (GLP). Com isso, a alíquota desses itens não poderia ser superior à geral do tributo cobrado em cada Estado. Não houve consenso sobre a essencialidade da gasolina, o que, portanto, ainda carece de regulação, em linha com o que disse o governador gaúcho, ao defender que os governos praticassem alíquotas de 25% em razão da possibilidade de retirar a gasolina dessa classificação.
Tentativa de reaver perdas
O problema é que por trás desse argumento está o equilíbrio das contas públicas. Para se ter uma ideia, praticando alíquotas de 30% (em janeiro passaram a 25%) nesses setores, em 2021, o Rio Grande do Sul arrecadou R$ 47,6 bilhões em ICMS. Do total, 16,5% vieram da tributação sobre os combustíveis e 10,7%, da energia elétrica – os dois principais grupos dessa receita.
No ano passado, após queda de 8,8%, o ICMS somou R$ 43,4 bilhões. De acordo com o Palácio Piratini, o superávit orçamentário de R$ 3,3 bilhões do último exercício poderia ter sido maior, não fossem pelos R$ 5,7 bilhões que não foram recolhidos em razão da alíquota de 17% na gasolina.
Isso também é dinheiro que deixa de ser repassado aos municípios, que ficam com fatia de 25% do ICMS com base em critérios de partilha preestabelecidos. Significa que deixaram de ingressar nos cofres das cidades gaúchas, segundo relatório de transparência fiscal da Secretaria da Fazenda (Sefaz), mais de R$ 1,5 bilhão, somente a partir do segundo semestre, em decorrência da mesma situação.
O presidente da Federação das Associações de Municípios do Estado (Famurs), prefeito de Restinga Sêca, Paulinho Salerno informa que, em 2022, as prefeituras receberam R$ 8,5 bilhões em ICMS. Qualquer alteração sobre o tributo, comenta, impacta as administrações locais que já "enfrentam dificuldades de gestão orçamentária”.
— O governador abriu a discussão sobre a retirada da gasolina dos itens essenciais, na nossa assembleia de verão, na tentativa de reaver a arrecadação, tendo em vista que o Estado pode deixar de contar com mais de R$ 5 bilhões por ano, caso a alíquota permaneça em 17% – explica.
Salerno acrescenta que a tentativa de controlar a alta dos preços da gasolina no governo de Jair Bolsonaro “feriu a autonomia” de prefeitos e governadores.
— Todos nós queremos gasolina barata, mas não tendo como alvo o imposto estadual e o impacto para os demais entes da federação.
As reações do setor produtivo
No setor produtivo, por menor que seja o sinal de elevação de impostos, a reação é imediata. Nesse caso, não é diferente. O vice-presidente jurídico da Federasul e professor de Direito Tributário da PUC-RS, Milton Terra Machado, entende que é “inequívoco” o caráter essencial da gasolina. Ele justifica que, se o diesel recebe essa classificação em função do grau de necessidade para a cadeia produtiva, a gasolina cumpre igual função para os demais contribuintes:
— Mesmo para quem não tem carro, é imprescindível para mobilidade urbana ou prestação de serviços. E, na Constituição, não há previsão de que o essencial esteja associado apenas ao setor produtivo, pode e deve considerar a demanda de todos os contribuintes.
Sobre as declarações de Leite, ele afirma que a perda do ICMS é prejudicial aos Estados, mas compensar os efeitos majorando a alíquota em 25% não seria a melhor solução. Além do mais, lembra, no momento existe uma Lei Federal e a necessidade de regramento específico sobre a essencialidade da gasolina em aberto no Congresso, o que tornaria eventual medida que aumente a carga sobre esse combustível inconstitucional.
A Fecomércio-RS reforça que “sempre terá posicionamento contrário a qualquer aumento de imposto”. De acordo com o presidente da entidade, Luiz Carlos Bohn, o Estado já possui uma elevada carga de ICMS sobre PIB, quando comparado às demais unidade da federação.
— No caso específico da gasolina, essencial ou não, hoje ela não tem subsídio, já tem incidência da alíquota básica e acima, inclusive, de produtos considerados essenciais por nossa lei, como aqueles da cesta básica. Por isso, não nos parece que essa seja uma razão para aumentar sua tributação.