Desde o início da pandemia, quase 175 mil gaúchos ingressaram na B3, a bolsa de valores brasileira, em busca de melhores rentabilidades e contornar juros reais (descontados da inflação) negativos. O avanço de 220,14% – que elevou a participação do RS a 254,4 mil pessoas físicas no mercado acionário brasileiro – acompanha o movimento nacional verificado em igual período no país, quando mais 3,1 milhões de CPFs (alta de 220,8%) passaram a alocar recursos em renda variável, totalizando 4,5 milhões em setembro deste ano.
Foram necessários sete anos, entre 2013 e 2020, para que o Brasil saísse da casa dos 500 mil CPFs na bolsa e rompesse a barreira dos 2,5 milhões, num salto de 400%, intensificado a partir de 2017. No Rio Grande do Sul, em idêntico intervalo, a base de investidores pessoa física foi ampliada de 36,4 mil para 152,4 mil, alta de 318%. O levantamento é da área de Inteligência de Mercado da B3.
Entre os estreantes estava casal de Glederson Fagundes, 41 anos, e Elisandra Freitas, 36, que deixaram a atividade de motoristas de aplicativo para se tornarem operadores de mesa no auge das restrições em razão da covid-19. Moradores de Xangri-lá, no Litoral Norte, a migração de ambos começou com o garimpo de informações na internet.
A vida não foi fácil, comentam. No início, atuaram como day traders (fazendo transações diárias) no CPF de Elisandra. Enfrentaram turbulências, volatilidade e muitas foram perdas naquele ano, lamentam. Sem experiência, optaram por adquirirem o conhecimento necessário para operar uma mesa proprietária, há 11 meses.
Trata-se de um modelo de prestação de serviço em que empresa disponibiliza seu capital para terceiros, nesse caso a Axia Investing. Assim, os traders não utilizam recursos próprios, dividem os lucros com a proprietária, e têm limitadores de perdas (stop loss), o que ajudou a diluir os riscos e eliminar os medos, contam.
— Pegamos pandemia, guerra, inflação mundial, sobe e desce no câmbio. O pior momento foi em 2020, tentando operar com o nosso dinheiro. Em 2021, resolvemos participar do teste para ser trader de mesa operadora e passamos. Com investimento de R$ 800 e perdas restritas a esse valor, o cenário mudou. Os ganhos ainda não são iguais aos melhores dias como motorista de aplicativo antes da pandemia, mas estão dentro da média que esperávamos — conta Elisandra.
A corrida da renda fixa para a variável
Casos como o do casal explicam parte da aceleração de investidores no mercado na última década. Mas, o principal impulso viria a partir de 2017, com a trajetória de declínio do juro básico da economia. Entre dezembro de 2016 e 2020, a taxa Selic despencou de 14% para 2% ao ano.
Conforme o analista de renda variável da Warren Eduardo Grübler, a corrida da renda fixa (títulos remunerados pela Selic) para a renda variável (ações em bolsa) na tentativa de contornar juros reais (taxa nominal da Selic descontada a inflação) negativos do período foi uma "explosão".
O problema, explica o analista, é que muitos iniciantes encontraram um ambiente desfavorável, seja pelas métricas, preços ou variáveis macroeconômicas. Mesmo assim, lembra, a percepção da época era de que "qualquer coisa" seria melhor do que juros tão baixos:
— Até 2017 foi um momento interessante, coincidindo com a aceleração dos novos CPFs, mas não demorou para que a bolsa deixasse de ser tão barata. O que não significa impossibilidade de ganhos, tanto que as pessoas continuaram a entrar a despeito de perspectivas nem tão favoráveis, mas por razões comportamentais: para aproveitar a alta. E, em 2020, veio o choque.
No ano passado, a B3 registrou a primeira queda (-11,93%) desde 2015. Um ano antes, em 2020, já exibia alta mais contida, de 2,92%. Isso após sequência de quatro crescimentos anuais acima de dois dígitos (em duas, acima de 30%, em 2016 e 2019).
Concorrência maior no mercado
Líder regional da XP Inc no RS, Rafael Carmo aponta que a B3 partiu de patamar de 60 mil pontos, em 2016, para próximo a 120 mil em 2020. A pontuação do Ibovespa, o principal índice acionário do país, é um balizador dos ânimos no mercado. Quando sobe, revela fatores positivos da dinâmica, fundamentado em elementos como expectativa dos investidores, cenários macroeconômicos e valorização das empresas que formam a carteira teórica do indicador.
No meio do caminho, diz o economista-chefe da Geral Asset, Denilson Alencastor, houve ainda reorganização do mercado, o que abriu as portas para a oferta de novas plataforma de investimentos e, com elas, abundância de informações financeiras, sobretudo nas redes sociais. Redução de custos, como taxas de corretagem, de custódia e valores fixos para ordens de compra e venda, também explicam, segundo ele, caminhos melhores para pessoas físicas nas alocações de risco.
A Warren Investimentos é fruto desse ambiente. Surge em 2017, na capital gaúcha, com a proposta de popularizar estratégias e fundos antes restritos aos family offices (serviço especializado para as famílias de alto poder aquisitivo). Em 2019, a XP, cujo embrião também foi gerado em Porto Alegre no início dos anos 2000, ganharia o mundo com lançamento de ações na Nasdaq, em Nova York, que captou US$ 2,25 bilhões na ocasião.
Para Carmo, o crescimento de redes sociais e influenciadores digitais, patrocinados pelas corretoras para "falar de mercado", ajudou a modelar o novo comportamento do investidor brasileiro, que está, agora, "mais maduro":
— Antes, o custo das operações tinha taxa de corretagem de R$ 15 por ordem (de compra ou venda), hoje algumas sequer cobram, e isso nasce com a concorrência. (...) Deixa a porta aberta para qualquer um que deseje investir em bolsa.