Em julho do ano passado, a Equatorial assumia em definitivo a Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE) pelo valor simbólico de R$ 100 mil, após privatização viabilizada via governo Eduardo Leite. Com plano de investir R$ 100 milhões no primeiro ano, a meta era começar a alterar os rumos da até então estatal. Mas o caminho é longo, informa a agora empresa privada: depende de investimentos e de prazos.
O cartão de visitas, indigesto, para a nova controladora, cujo histórico remete a resgate de empresas em outros Estados, viria oito meses após a posse. Mais especificamente, no final de semana de 6 de março, quando dois temporais interromperam o fornecimento de 190 mil clientes, quase 12% dos 1,7 milhão de gaúchos residentes em 72 municípios da Grande Porto Alegre e das regiões Sul, Campanha e Litoral, áreas de concessão da empresa.
Naquele momento, algumas pessoas relataram que já esperavam por melhorias nos atendimentos sob a nova gestão. Mas, passados quase três dias, cerca de 45 mil consumidores permaneciam sem energia elétrica, a maior parte em cidades da Região Metropolitana e da Capital. A sensação, para muitas pessoas entrevistadas naquele momento, era de que nada havia mudado e, se havia, tinha sido para pior.
Nesta semana que passou, ciente da passagem da tempestade Yakecan pelo Estado, a CEEE Equatorial se antecipou. Anunciou que estava preparada para ocorrências que surgiriam com fortes chuvas e rajadas de vento que poderiam chegar a pouco mais de 100 km/h. Ao contrário do início do ano, desta vez os maiores estragos ficaram concentrados na região litorânea. Por volta das 23h de terça-feira passada (17), 325 mil unidades consumidoras estavam sem energia no pico dos incidentes. Segundo o presidente da CEEE Equatorial, Raimundo Bastos, 67 municípios (dos 72 da área de concessão) foram “atingidos de forma intensa”.
Até a meia-noite do dia seguinte, diz Bastos, 239 mil religações tinham sido feitas, o que equivalia a quase 75% das demandas solucionadas. Mesmo assim, 86 mil clientes permaneciam desabastecidos. Nesta sexta-feira, restavam 8 mil ocorrências em atendimento. Entre as ações que garantiram “balanço positivo” da operação após a Yakecan, segundo Bastos, esteve a ampliação de 100% do efetivo de equipes de prontidão de maneira “equilibrada” entre a Capital e o Interior e maior facilidade de acesso aos canais de atendimento.
Relatos apurados no Litoral, como os dos prefeitos de Tavares, Gardel Araújo, e de Mostardas, Moisés Batista Pedone de Souza, contradizem a constatação. Eles reclamaram de dificuldade de comunicação com a Equatorial e de pouca movimentação de equipes de conserto nas duas cidades, quando já estavam havia 24 horas sem energia.
— Desta vez não houve dificuldades dos consumidores em informar os problemas. Neste aspecto, e na agilidade da resolução dos problemas, acredito que apresentamos uma evolução significativa, com alguns problemas pontuais — contrapõe Bastos.
Notificação, inquérito e fiscalização
Em relação a março, a situação gerou notificação do Programa de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon) de Porto Alegre, a abertura de inquérito civil no Ministério Público (MP) e processos de fiscalização mais rígidos na Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados (Agergs), que culminaram, de imediato, na aplicação de multa fixada em R$ 3,4 milhões pela reguladora por informações prestadas fora do prazo.
Não apenas em razão das chuvas e dos ventos, mas porque houve pessoas em situação de urgência que não conseguiram acionar a companhia, respostas desencontradas nos canais de atendimento e a sensação, relatada por muitos, de que as equipes de rua eram insuficientes e atuavam de forma desorientada.
Coordenador do Centro de Apoio Operacional do Consumidor e da Ordem Econômica no MP, o promotor Gustavo Munhoz comenta que, diante do volume de reclamações em março, a instauração de um inquérito foi inevitável. Agora, a investigação busca eventuais relações de “causa e efeito” entre novas práticas de gestão na CEEE e os transtornos.
— Há argumento forte de que demissões teriam causado dificuldades no atendimento e na retomada do serviço. A empresa nega e alega que, hoje, técnicos de campo estão em número superior. Isso será apurado. Há outros argumentos, como esvaziamento de equipamentos, o que a Equatorial também refuta. Vamos investigar — diz Munhoz.
O que ocorreu em março foi concentrado na Região Metropolitana, que tem densidade de carga e de consumidores muito maior e facilidade de acesso aos locais, e o tempo foi demasiadamente longo (para retomar o serviço). Nesta semana, na avaliação inicial, a velocidade foi mais adequada
ALEXANDRE JUNG
Gerente de energia elétrica da Agergs
Na mesma linha, o gerente de energia elétrica da Agergs, Alexandre Jung, explica que a agência coleta novas informações. A ideia é elaborar relatório, ainda em maio, a respeito dos motivos e os danos consolidados aos consumidores, mas que não incluirá ocorrências desta semana. A meta é apresentar recomendações sobre prováveis termos de notificação, que poderão gerar o arquivamento do processo ou um novo auto de infração à Equatorial. O conteúdo também poderá embasar o inquérito do MP.
Na comparação entre os episódios de março e da Yakecan, Jung afirma que, no primeiro, houve indícios de irregularidades, sobretudo por demora de atendimento. Já na semana que passou, o tempo de resposta foi “três vezes mais rápido”, diz Jung.
— O que ocorreu em março foi concentrado na Região Metropolitana, que tem densidade de carga e de consumidores muito maior e facilidade de acesso aos locais, e o tempo foi demasiadamente longo (para retomar o serviço). Nesta semana, na avaliação inicial, a velocidade foi mais adequada — pondera Jung.
Nos reunimos com a CEEE Equatorial em março. Estamos acompanhando as promessas de investimentos e de melhorias nos atendimentos aos consumidores por telefone, aplicativos e redes sociais para garantir, de fato, que serão colocadas em prática
RAFAEL MAGAGNIN
Defensor público
A Defensoria Pública do RS se reuniu com a Equatorial em março. O órgão diz que solicitou informações e estabeleceu parceria com a empresa para encaminhar pedidos de compensação financeira por prejuízos reclamados por clientes (com eletrodomésticos e produtos perecíveis). Além disso, “acompanha” a implantação das melhorias prometidas.
— Nos reunimos com a CEEE Equatorial em março. Estamos acompanhando as promessas de investimentos e de melhorias nos atendimentos aos consumidores por telefone, aplicativos e redes sociais para garantir, de fato, que serão colocadas em prática — aponta Rafael Magagnin, defensor público do núcleo do consumidor.
“Falta de planejamento”, diz ex-técnico
Quando o tema é redução de funcionários, nas investigações em andamento, o caráter é inconclusivo sobre efeitos. Mais do que números, o tema envolve o preparo e a disponibilidade das equipes.
O PDV trazia proposta com a seguinte conclusão: ou adere ou será demitido, depois, sem nenhuma vantagem, ou fica, com redução de 50% no salário
LUIZ ALBERTO SCHREINER
Diretor do Senge-RS
Eletricista com duas décadas de serviços na CEEE e diretor do Sindicato dos Engenheiros (Senge-RS), Luiz Alberto Schreiner lembra que o primeiro ato da Equatorial, ao tomar posse, foi aplicar plano de demissões voluntárias (PDV). Antes, a companhia já havia tentado garantir demissões, mas não obteve anuência do sindicato. O objetivo, comenta Schreiner, seria cortar o efetivo pela metade, como teria acontecido mais tarde, com o PDV. Nesse caso, a adesão chegou a 998 funcionários, com outros 50 desligamentos subsequentes, totalizando redução de 1.048 pessoas – 52,4% do quadro, até então com 2 mil colaboradores, de acordo com cálculos do Senge.
— O PDV trazia proposta com a seguinte conclusão: ou adere ou será demitido, depois, sem nenhuma vantagem, ou fica, com redução de 50% no salário — diz Schreiner.
O técnico industrial eletrotécnico Paulo César Santos Maciel atuou por mais de 10 anos no centro de operações – o cérebro de uma distribuidora de energia nos momentos de crise. Ele foi uma das baixas do PDV e identifica relação direta entre as demissões e as crises nos temporais. Segundo ele, com as demissões, “a qualidade técnica também foi embora”:
— Inclusive, (empresas) terceirizadas foram trocadas de forma abrupta, o que impactou na quantidade e na qualidade de pessoas. Setores inteiros ficaram acéfalos, como a TI (tecnologia da informação), projetos e intervenções na rede. Foi um misto de falta de planejamento e ímpeto de reduzir custos operacionais. Isso gera as situações que vimos e as que ainda veremos.
Houve redução no quadro, mas não teve influência. Queremos melhorar a qualidade e vamos ampliar a capacidade de atendimento, que já é três vezes maior do que a anterior
RAIMUNDO BASTOS
Presidente da CEEE Equatorial
Presidente da CEEE Equatorial, Raimundo Bastos diz que a ideia não era apresentar o PDV de imediato, “mas a ansiedade de quem estava acostumado com a gestão estatal apressou o processo”, argumenta. O número de adesões, diz, é idêntico ao do Senge-RS (998), mas Bastos afirma que 60% dos desligamentos foram em setores administrativos. E assegura que a prioridade foi “controlar” saídas em segmentos sensíveis e ampliar os terceirizados.
Bastos relata incremento de 26% na força de trabalho (de 1.214 para 1.526 pessoas) e equipes de campo (de 356 para 448). Para o presidente, agora é possível contar com equipes de emergência mobilizadas e “quantidade significativa” para novas ligações.
— Houve redução no quadro, mas não teve influência. Queremos melhorar a qualidade e vamos ampliar a capacidade de atendimento, que já é três vezes maior do que a anterior — acrescenta Bastos.
Presidente da companhia aponta fortalecimento
Diante das críticas, a Equatorial buscou, com números, sustentar que os dois eventos climáticos foram pontuais. Ainda assim, admite falhas nos sistemas, em março, o que retirou o georreferenciamento (serviço de localização) das equipes de rua e resultou na indisponibilidade do sistema de SMS e no envio de mensagens com prazos inadequados para os consumidores, também via SMS. Por outro lado, a empresa nega que a quantidade e a qualidade das equipes, bem como que a transferência de uma das quatro subestações móveis gaúchas para outra unidade do grupo tenha influenciado os atendimentos.
Fundada em 1999 para concorrer em leilões de privatização, em 2006 a Equatorial ingressou no setor ao adquirir a Companhia Energética do Maranhão (Cemar). Além da distribuição no Estado de origem, tem experiências em levantar ativos de energia elétrica no Pará, em Alagoas e no Piauí. Com a incorporação de parte do RS, em 2021, passou a atender 13% do total de consumidores brasileiros, com fatia equivalente a 7% do mercado no país.
Em 2021 (com seis meses de gestão da Equatorial), investiu R$ 100 milhões no Rio Grande do Sul, valor acima da média anual de R$ 70 milhões praticada na gestão estatal. Reduziu o prejuízo líquido de R$ 1,6 bilhão, em 2020, para R$ 394 milhões no ano passado. Em 2022, o orçamento para financiar os avanços pretendidos será quadruplicado e ficará próximo de R$ 430 milhões, com a meta de tornar as ações menos “reativas” e mais “preventivas”.
O presidente do instituto Acende Brasil, considerado uma espécie de observatório de energia, Cláudio Sales, lembra que a Equatorial assumiu o controle da CEEE com a obrigação de devolver R$ 250 milhões em cobranças de PD (pesquisa e desenvolvimento) não aplicados para essa finalidade, custos operacionais muito acima da eficiência entregue e, por fim, um passivo superior a R$ 7 bilhões. Além disso, comenta, a situação econômica era de insolvência e inviabilizava o cumprimento do contrato, que já havia ensejado a abertura de processo de caducidade (perda da concessão por descumprimento de metas).
Indicadores da empresa
Frente aos problemas de março, o presidente da CEEE Equatorial, Raimundo Bastos, nega que especificidades gaúchas tenham trazido imprevistos adicionais à gestão, mas antecipa que os episódios aceleraram investimentos.
Segundo Bastos, apesar da percepção negativa deixada pelos episódios ser “compreensível”, os números mostram tendência de melhora. É o caso de dois principais indicadores de qualidade avaliados pela Aneel: Duração Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora (DEC) e Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora (FEC). O primeiro mede a duração, o segundo, a frequência média de interrupções de energia.
Em 2021, houve redução de 9,70% e de 8,22%, respectivamente, nos índices. Ainda que permaneçam bastante acima dos limites regulatórios (o DEC de 2021, por exemplo, foi de 18,06 horas, praticamente o dobro do limite estabelecido pela Aneel, de 9,26 horas), compromissos assumidos junto à Agergs devem ser cumpridos para evitar penalidades, como seria o caso de eventual reabertura do processo de caducidade da concessão. Assim, a quantidade de interrupções, que fica na média de 20,06, em 12 meses, terá de ser reduzida a 18,96 em junho deste ano.
Nesse contexto, há regra automática: para cada cliente que sofre interrupção acima do teto, existe a obrigação de conceder compensações. Ou seja, além de não vender energia no período de queda no fornecimento, é preciso dar descontos nas faturas seguintes. No ano passado, esse tipo de incidência custou R$ 35,8 milhões à CEEE. Até fevereiro de 2022, a Equatorial desembolsou (ou deixou de receber) R$ 5,2 milhões – o equivalente a 14,5% do total registrado em 2021.
Pior desempenho no Sul
Os investimentos e melhorias pretendidos pela Equatorial podem levar algum tempo para produzirem os efeitos esperados. É que as condições em que a Equatorial assumiu a CEEE levaram o Ministério de Minas e Energia (MME) a aprovar prorrogação, válida por cinco anos, para o cumprimento dos limites estabelecidos nos indicadores regulatórios, até o momento transgredidos tanto na gestão estatal quanto na privada.
A ideia é dar margem para que o novo controlador se inteire da real situação e possa colocar em prática o planejamento. Enquanto isso não acontece, dados oficias evidenciam que, independentemente do modelo (privado ou estatal), os gaúchos ficaram, com o passar dos anos, acostumados com serviços de baixa qualidade. Alguns foram melhorados no curto prazo de gestão privada na CEEE, caso dos chamados DEC e FEC. Outros, pioraram (veja mais no gráfico).
Os números também revelam que a espera por soluções é muito mais lenta para os gaúchos. Em 2022, enquanto o tempo médio de execução (TME) dos atendimentos das estatais Copel, no Paraná (30,76 minutos), e Celesc, em Santa Catarina (23,03 minutos), ficam próximos ou abaixo de meia hora, por aqui, é preciso aguardar mais do que o triplo. A média é 119,24 minutos, no caso da RGE, e de 104,87 minutos na CEEE, em igual período, o que garante ao Rio Grande do Sul o pior desempenho entre os três Estados da região.