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Que a tecnologia virou uma grande aliada na hora de conhecer alguém, não dá para negar. Afinal, aplicativos de namoro e redes sociais são a maneira mais fácil de se conectar com as pessoas hoje - ainda mais em meio à pandemia. Mas até que ponto essa gama de opções de fato ajuda as pessoas a engatar relações significativas? Será que a impressão de termos uma infinidade de possibilidades na ponta do dedo não atrapalha na hora da construção de um relacionamento?
Uma pesquisa realizada pelo aplicativo de namoro Happn mostra que os usuários da plataforma estão enfrentando dificuldades para iniciar relacionamentos. Para exemplificar, um dos dados do estudo aponta que 81% dos participantes passam mais tempo curtindo perfis do que de fato conversando com outras pessoas.
De acordo com a pesquisa, há cinco sinais de que os usuários estão vivendo um "dating burnout" - ou seja, que se sentem exaustos ou ineficazes na construção de um relacionamento. Para a psicóloga e terapeuta de casal Emmanuelle Camarotti, que administra o perfil @eumulherciclica no Instagram, esse "cansaço" pode ser associado ao termo criado pelo sociólogo Zygmunt Bauman de "relações líquidas", que diz respeito à cultura imediatista do mundo de hoje.
Essa impressão de "ter tudo ao alcance" apenas com um toque acaba por podar a reflexão do indivíduo sobre o próprio comportamento - o que resulta em um fácil descarte de pessoas, uma baixa tolerância à frustração e inúmeras dificuldades em se abrir verdadeiramente para relacionamentos, aponta a terapeuta.
A plataforma listou cinco sinais de que você pode estar entrando no chamado "burnout afetivo". A convite de Donna, a terapeuta Emmanuelle e a psicóloga e sexóloga Lina Wainberg refletem sobre os efeitos de cada ponto de atenção. Veja:
Você usa vários aplicativos ao mesmo tempo?
De acordo com a pesquisa, 78% dos entrevistados pelo Happn usam ou já usaram mais de um aplicativo de namoro ao mesmo tempo. Ou seja, as pessoas baixam vários apps em busca de novos rostos, acreditando que vão, em algum lugar online, encontrar "a pessoa perfeita que se encaixa em todas as suas expectativas".
Para Emmanuelle, um dos efeitos de mostrarmos somente a parte bacana das nossas vidas nas redes sociais - as fotos mais bonitas, com os melhores filtros - é que criamos uma tolerância muito menor aos defeitos dos outros. E essa eterna procura pela "pessoa perfeita" é ilusória.
— Essa busca por perfeição acaba desenvolvendo uma rigidez de não querer conhecer as pessoas, de não querer passar pelo processo de construir uma relação. E também de rotular facilmente alguém a partir de uma breve descrição e de uma foto. Nós somos muito mais do que a descrição de um aplicativo — reflete a psicóloga.
Além disso, não dá para negar que os aplicativos acabaram adquirindo uma função de "catálogo de pessoas". Para Lina, essa é uma questão importante, já que logo descartamos quem não se encaixa no perfil que temos em mente - e perdemos possibilidades interessantes de encontros.
— A busca nesses aplicativos permite uma gama de possibilidades muito maior para se escolher, mas, ao mesmo tempo, exclui facilmente aqueles indivíduos que não se encaixam em um perfil. E isso pode acabar impedindo possibilidades que poderiam ser interessantes — diz.
Muitas curtidas e pouco papo?
Na pesquisa, 81% dos usuários do app afirmaram que passam mais tempo curtindo os perfis de outras pessoas do que conversando com elas e buscando, de fato, conhecê-las. Além disso, 94% dos entrevistados dizem sentir que está cada vez mais difícil engatar uma conversa e manter interações significativas nos aplicativos. Geralmente, os papos online não se desenvolvem e ficam no clichê de “Oi, tudo bem? De onde você é? Qual sua profissão?”.
Emmanuelle aponta que, depois do "match", muitas pessoas têm um certo medo de abrir uma conversa e se "expor". Mesmo inconscientemente, não se deixam conhecer para evitar uma possível frustração.
Além disso, é muito mais difícil ter espaço para ser autêntico nas conversas por aplicativos, pontua a terapeuta.
— O aplicativo torna as coisas mais quadradinhas, já que o meu critério de inclusão ou exclusão se torna mais rígido em relação ao que acredito ser a pessoa ideal para mim. Existe uma facilidade em rejeitar a pessoa já nas primeiras palavras, em vez de realmente desenvolver uma conversa — pontua.
Outro ponto importante são as diferenças de encontrar uma pessoa cara a cara ou conhecê-la (e julgá-la!) apenas pela tela do celular. Pesquisas mostram que há processos do jogo de sedução que só são possíveis em um encontro presencial, lembra Lina. Isso contribui para que haja uma objetificação de possíveis parceiros, e, por isso, o "descarte" fica tão mais fácil.
Você coleciona (muitos) dates ruins?
Você se interessou por alguém, mas não ao ponto de ter tanta vontade assim para ir a um encontro. Porém, aceita o convite e acaba indo. Na pesquisa, 64% dos entrevistados afirmaram já ter se encontrado nesse tipo de situação. A consequência pode ser mais um encontro ruim para a lista, com alguém que talvez você nunca teria saído se não fosse o aplicativo. E isso pode aumentar a dificuldade em iniciar ou construir um relacionamento.
A terapeuta associa essa questão com a necessidade de algumas pessoas em estar conhecendo outras constantemente - o que pode mostrar uma dificuldade de conviver consigo mesma. Lina acrescenta que, pela apresentação nas redes sociais ser muito superficial, é mais fácil se decepcionar com a pessoa no mundo real.
— As pessoas vão conhecendo o indivíduo e logo já partem para o encontro presencial sem ter conhecido a fundo esse parceiro. Uma coisa interessante da pandemia é que as pessoas estão dedicando mais tempo para conversar, já que não podem se encontrar, e conhecendo mais detalhes, sentimentos e particularidades uns dos outros — reflete.
Você se sente ansiosa por estar online?
É melhor estar online do que perder algo? 71% dos participantes da pesquisa afirmaram sentir ansiedade ou achar que estão perdendo algo quando não estão conectados a um app de relacionamento. Esse sentimento tem até um nome: FoMo (sigla em inglês para "Medo de Perder Algo"), que caracteriza o medo de ficar fora do mundo tecnológico.
Para Emmanuelle, esse estado de atenção e busca constante por alguém não nos permite olhar para nós mesmas e refletir. Afinal, qual o tipo de relação que quero ter? Qual o tipo de pessoa que eu gostaria na minha vida? Ou ao contrário: que tipo de pessoa eu não gostaria na minha vida? Que relação não serve para mim?
— E aí, aceito o que vem. Se eu não tenho essa noção de qual é o tipo de relacionamento que eu gostaria de construir, quais são os meus valores, as minhas necessidades... Se não olhar para mim antes, vou fazer inúmeros testes, tentar conhecer várias pessoas ao mesmo tempo. Não vou me permitir ter esse momento, que é tão importante para que as relações funcionem — exemplifica a psicóloga.
Já vivenciou (ou fez!) um ghosting?
Quem já esteve em apps de namoro provavelmente já viveu essa situação: sem motivo aparente, seu "match" deixa de responder às mensagens. O sumiço repentino - ou "ghosting" - é visto como algo "normal" para 58% dos entrevistados. Mas será que deveria ser uma atitude tão comum assim?
Para Emmanuelle, essa é uma questão que envolve (falta de) responsabilidade afetiva por parte de quem "some", já que demonstra uma certa imaturidade em não conseguir falar sobre assuntos que podem ser desagradáveis. Por medo de se comprometer e colocar um ponto final naquela conversa, a pessoa decide, simplesmente, desaparecer. O comportamento parece estar se tornando naturalizado porque é conveniente, já que não exige responsabilidade pelas próprias atitudes e ainda deixa uma porta aberta para um futuro reencontro.
— Paro de responder e, no final de semana que não descolei nenhum date, vou reativar aquela pessoa. E, se tudo der certo, tenho um encontro para o final de semana. Por quê? Porque não posso estar sozinho. E aí tenho uma lista de pessoas a quem recorrer quando estiver me sentindo carente e quiser encontrar alguém — exemplifica a psicóloga.
Afinal, o que fazer?
Para Lina, é importante deixar claro que o problema não são os aplicativos, e sim o uso que as pessoas estão fazendo deles. Emmanuelle completa: antes de partir para os matches, é preciso ter certeza do que você busca em um relacionamento:
— De forma geral, os aplicativos podem ser benéficos se aceito minha própria vulnerabilidade enquanto ser humano. Se eu aceito que, para que possa, de fato, conhecer uma pessoa, preciso estar aberta para que essa pessoa me conheça. Eu preciso derrubar essas paredes que me cercam — aconselha.
*Colaborou Luísa Tessuto