Na história do teatro, é dito que o bobo da corte era a única figura da monarquia que podia falar sobre tudo – inclusive, criticar o próprio rei sem ser penalizado, já que estava ali para fazer rir. Usar o humor de forma estratégica é uma prática na qual Patsy Cecato e Deborah Finocchiaro são mestras.
Há mais de 30 anos que elas escrevem, dirigem e protagonizam peças de teatro daquelas que fazem o abdômen doer de rir, ao mesmo tempo em que deixam ecoando na cabeça questões problemáticas, que fazem repensar a vida. E as duas fazem questão de ser porta-vozes de temas que impactam a vida das mulheres, usando suas obras para tentar romper barreiras sobre o prazer feminino, chamar atenção para a questão da violência doméstica e tensionar assuntos como o medo de envelhecer, de entrar na menopausa e de ser descartada pela sociedade. A crença é de que, através do riso, dá para falar de coisa muito séria.
— Era muito permitido rir da mulher. Todas as coisas relacionadas a ela eram engraçadas, dos nomes usados para falar do seu órgão sexual à TPM. Então, eu sentia como se desse o meu corpo em sacrifício naquele palco, encarnava toda a dor para que o público pudesse rir. Hoje em dia, consigo olhar para o passado e ver a importância que foi discutir sobre essas coisas – afirma Patsy, relembrando os anos em que atuou em Se Meu Ponto G Falasse (1997).
Para abrir as reflexões deste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, Donna convidou Patsy e Deborah para um bate-papo no palco da Casa de Espetáculos, em Porto Alegre. Elas falam dos desafios e transformações que acompanharam ao longo das últimas décadas.
Prazer feminino
“Agora que a gente é dona do próprio corpo, da própria vida, pode tomar as próprias decisões, tem um dinheirinho que é só da gente, sabe o que está faltando? Um pouco mais de prazer. Todo o prazer do mundo e sem culpa.”
O trecho em destaque faz parte da peça Se Meu Ponto G Falasse (1997), espetáculo escrito por Patsy em parceria com seu ex-marido Júlio Conte (que também é diretor do espetáculo) e Heloísa Migliavacca. A obra retrata a mulher do século 20 inserida na revolução sexual.
Neste contexto, ela luta pelo seu próprio prazer, na contramão de uma cultura que focava apenas no prazer masculino. As duas autoras também foram protagonistas e estiveram em cena da primeira apresentação até 2022, quando um novo elenco deu continuidade a esse trabalho que continua a preencher teatros, mesmo tendo se passado 26 anos desde sua estreia.
— Minha geração lutou pelo direito ao prazer feminino, porque havia quase que uma epidemia de mulheres que não tinham orgasmos, que nunca tinham sentido prazer. Já havíamos passado por vários tabus, da virgindade, do casamento, de ter ou não filhos, mas o orgasmo era um tema ainda muito silenciado. Então, quando a gente entrou com esse tema, explodiu, principalmente, porque havia uma necessidade muito grande dele ser trazido à tona — acredita Patsy.
Já que “não dava para meter o pé na porta”, lembra a dramaturga, foi na base da gargalhada que tocaram em assuntos que muitas pessoas não conseguiam verbalizar. A peça mostra a trajetória de duas mulheres que sonharam com o príncipe encantado, se decepcionaram e partiram para um processo de conquista de autoestima, sexualidade e independência financeira.
Patsy, que tem 62 anos, revela que o propósito de sua carreira dedicada à criação de personagens femininas tem origem em alguns traumas. Na infância, via o pai demandando tudo da mãe, que vivia para servi-lo. Já na vida adulta, também foi vítima do machismo e viu várias portas sendo fechadas por ser considerada “ríspida e “impositiva demais”.
— O trauma me causou uma necessidade incrível de dar voz à minha mãe. E, à medida em que fui vivendo, sendo abusada e desvalorizada constantemente pelo machismo, a luta tornou-se pela minha sobrevivência também. Mulheres de alma rebelde, como eu, eram muito penalizadas, mas isso não me parou. Me considero uma amiga, alguém com quem as mulheres podem contar — declara.
A dramaturga nascida em Florianópolis orgulha-se de Se Meu Ponto G Falasse por ser uma das comédias mais conhecidas do teatro gaúcho e por ter servido de pontapé inicial para que mais e mais espetáculos que dão voz às demandas femininas fossem produzidos no Brasil, observa.
Violência doméstica
“Ah, guria, é que com o meu marido eu me sinto assim, abusada, sabe? Usada... usada!É isso! Usada que nem uma coisa. Mas não posso me queixar, né? Eu tenho tudo dentro de casa.”
O trecho acima é entoado desde 1993 pela porto-alegrense Deborah Finocchiaro em Pois é, Vizinha, da qual é diretora e protagonista, dando vida à Maria, uma vítima de opressão e de violência doméstica. Em 30 anos rodando o país, o espetáculo já foi apresentado mais de 600 vezes, muitas delas em eventos ligados a entidades de proteção e delegacias da mulher.
A trama se desenvolve em uma conversa de janela para janela, onde Maria desabafa para a vizinha do apartamento em frente sobre a sua rotina. A protagonista vive trancada em casa pelo marido, que a agride e abusa, e passa os dias cuidando da casa e do cunhado semiparalítico e tarado, privada de liberdade e alienada de sua própria sexualidade. Até que se envolve num caso com um homem mais novo.
— O que me parece mais grave, além da situação em si, é que em alguns lugares o que mais chocava as pessoas não era que ela apanhava do marido e nem que ela estava presa em casa, e sim que ela tinha transado com o rapazinho! E questiono: o quanto dessa hipocrisia e moralismo está dentro de cada um de nós? De que forma a gente compactua com esse tipo de situação? Acho que estamos em um momento onde o ponto crucial é sermos éticos com a nossa fala — acredita Deborah.
Para se ter a dimensão dos terrenos que a peça estremeceu, é preciso mencionar que, quando foi montada pela gaúcha, ainda não existia Lei Maria da Penha — que viria a ser instituída somente em 2006, mais de 10 anos depois da estreia. Como o espetáculo continua a ser apresentado, Deborah não pode deixar de perceber uma mudança no público: com o passar dos anos, surge um riso diferente, já que há uma consciência maior de que aquilo que está sendo encenado trata de um crime.
Mas a tragicomédia não perdeu atualidade, já que o feminicídio e a violência doméstica ainda assombram as brasileiras. Não são raras as ocasiões em que as vítimas estão na plateia:
— Foram muitas as vezes em que mulheres foram no camarim, me dizendo que viviam essa situação e que iriam se separar. O mais triste é a gente constatar que essa situação continua tão real, tão acirrada e tão caótica. É por isso que a gente segue fazendo arte, acreditando que a gente pode contribuir para amenizar um pouco o mal do mundo.
Mulher polvo
A figura idealizada pela mulher do início do século 21, aquela que tem oito braços, é onipresente e multitarefas, dá conta de tudo e ainda arranja tempo para ter o corpo malhado, é o alvo da crítica de Manual Prático da Mulher Moderna. A peça é dirigida por Patsy Cecato desde 2002 e traz algumas falas emblemáticas, como: “Se você, mulher, pensa em conciliar os papéis de filha, mãe, esposa, amiga, amante, magra e profissional, você está louca!”
— É um grande clichê, com classe e elegância, para falar dessa mulher impossível. Após os movimentos pela liberdade sexual, nós nos vimos em um momento onde estávamos extremamente sobrecarregadas, tendo assumido todos os papéis. E isso não envelheceu em 20 anos — afirma a artista.
Do casamento entre Patsy e o ex-marido Júlio Conte, nasceu a atriz e diretora Catharina Cecato Conte, 31 anos, que, desde o ano passado, faz parte da nova geração do elenco. Em parceria com a mãe, ela também revisou o roteiro e atualizou a peça.
A dupla mexeu em detalhes e palavras que poderiam soar mal, conforme o tempo passou. Segundo Catharina, a obra parte da ideia de mulher perfeita para falar que, na verdade, não há regras para existir.
Questionada sobre quais seriam as diferenças entre a “mulher moderna” do início de 2002 e a de 2023, Catharina responde que a de agora está sempre em busca de ser a melhor versão que puder. Ainda assim, sua forma de existir continua a ser julgada.
— Hoje, é muito mais sobre qual é a mulher possível de ser. Para algumas, essa experiência será só profissional ou só familiar. Para outras, vai ser viajar. O lance é criar um mundo onde a multiplicidade de experiências femininas possa ser acolhida, ao invés de ser motivo de vergonha, que é o que vemos. A gente julga as mulheres por suas escolhas — reflete ela.
Descartabilidade
Um dos trabalhos mais recentes de Deborah Finocchiaro, Diário Secreto de uma Secretária Bilíngue (2019) coloca o dedo na ferida acerca de um tema que aflige boa parte da sociedade: a descartabilidade humana. A artista tensiona como o mercado de trabalho “ejeta” os mais velhos – principalmente tratando-se de mulheres – e como isso contribui para o pânico de envelhecer.
Para fazer isso, conta com o auxílio da personagem Marjori, uma secretária de 50 e poucos anos que, certo dia, dá-se conta de que está treinando a jovem que vai substituí-la no trabalho. Com a demissão no horizonte, passa a se questionar: o que resta? O que fez na vida além de trabalhar?
— É um joguete. Em nome de interesses econômicos e políticos, várias pessoas passam por esse descarte. E há muita identificação do público, algo triste já que é uma tragicomédia dizendo “meu Deus, eu trabalho há tantos anos, agora que estou me aposentando não sei o que faço da minha vida”. Se tu não tens propósito, acabou — afirma Deborah, que assina a dramaturgia juntamente com o ator, diretor e dramaturgo paulista Vinícius Piedade.
Coincidência ou não, Marjori vive o descarte ao mesmo tempo em que está passando pela menopausa e tenta entender as mudanças que seu organismo vem mostrando. Em um trecho da peça, ela diz: “Para menopausa eu já tentei de tudo! Já tentei Black Cohosh, isoflavona, semente de alcaçuz, já tentei reza, batuque, simpatia, tudo! Hormônio não posso tomar, meu ginecologista falou. Mas eu vou acabar tomando, né, ele não manda em mim.”
O tema entrou na peça de propósito, num esforço da dramaturga em somar-se às muitas vozes que vêm tentando furar a bolha sobre essa experiência inevitável e que não afeta só a mulher, mas sim todo o seu entorno, suas relações familiares, amorosas e de amizade.
— As mulheres têm vergonha de suar, de ver pele e libido mudarem. E muda mesmo, mudam as vontades, os desejos, os hormônios e, se tu não conseguires olhar para isso com aceitação, cuidado e amor, tu piras. Precisamos falar disso de uma maneira mais tranquila e poder ser quem a gente é. Não temos mais tempo para ficar usando máscaras. Quero máscaras só no palco, não na vida real. Essa esperança é o propósito da minha vida — conclui.