O plano de Lisiane Lemos era só dar uma passadinha em Pelotas para garantir aquele abraço apertado no pai, que estava de aniversário em março. Só que a pandemia forçou um retorno da gaúcha de 31 anos às origens: radicada em São Paulo, onde trabalha como gerente no Google, ela ficou sete meses no interior do Estado em razão do distanciamento social. E esse reencontro com a terra natal mostrou que tanto ela quanto a cidade haviam mudado para melhor.
Filha da professora Rosemar e do bombeiro Claudinei, Lisiane cresceu estudando como bolsista em escolas particulares. Ingressou na Universidade Federal de Pelotas, se formou em Direito e traçou dois objetivos: fazer intercâmbio na África e trabalhar em uma multinacional no Brasil. E ela chegou lá. Morou em Moçambique para, logo depois, em 2013, passar em uma seleção da Microsoft por aqui. No ano passado, virou gerente no Google, mas não para por aí: Lisiane ainda é professora de MBA na PUCRS, palestrante e engajada em mobilizações no combate ao racismo e ao sexismo no mercado de trabalho. A gaúcha é daquelas mulheres que inspira quem passa por seu caminho, por isso, figurou na famosa lista da Forbes que elege as pessoas mais influentes com menos de 30 anos, em 2017, além de integrar o ranking do Most Influential People of Africa Descent, que tem apoio da ONU, no ano seguinte. Parece muito para alguém de apenas 31 anos, né? E ainda tem mais: no meio da pandemia, em agosto, ela lançou o Conselheira 101, programa de incentivo à presença de mulheres negras em conselhos de administração.
– Essa foi a minha grande marca da quarentena. Não posso, mesmo que digitalmente, ficar sentada – pontuou a advogada que enveredou pelo ramo da tecnologia.
É por tudo isso que Lisiane se tornou uma das vozes mais potentes do país na luta por igualdade de gênero no ambiente corporativo ao levantar a bandeira da diversidade dentro das empresas. Ela defende que é preciso agir intencionalmente para abrir espaços às minorias em um cenário dominado por homens brancos. E a gaúcha é otimista, ainda mais depois dessa reconexão com o Sul durante a pandemia. Assim como ela evoluiu, Pelotas também seguiu novos caminhos e se tornou um lugar mais inclusivo. Lisiane lembra que a grande marca da época em sala de aula foi o contato com a história do negro apenas enquanto povo escravizado. Foi somente na adolescência que ela se envolveu em projetos voltados à autoestima da população preta e mudou sua visão de mundo. Nos últimos meses, encontrou uma cidade diferente – e ficou feliz:
– Pelotas me trazia essas lembranças de exclusão, de não me sentir parte do ambiente, de não ver pessoas negras em espaços de liderança. Hoje, vejo muitas mulheres nas ruas exibindo seus cabelos naturais, criando música, arte, sem medo. Estamos no caminho – diz a gerente do Google, que também participou recentemente do Experience Senac 2020 – Cocrie o Futuro da Educação, promovido pelo Senac-RS.
Leia a seguir um bate-papo sincero com a gaúcha sobre os desafios das mulheres no mercado de trabalho, a importância de programas para a inserção de negros em ambientes corporativos e as alternativas para criar ambientes mais inclusivos.
Sua vida é encarada por alguns como o exemplo.
É muito triste porque preciso desmistificar a ideia do negro único que, se ele venceu, todo mundo vai vencer. É errada. Todo mundo acha que o programa de trainee para negros do Magazine Luiza começou agora, mas não. Há três anos, participei junto com a Luiza (Trajano) da convenção de vendas da loja, para falar de igualdade racial. A Luiza é uma amiga pessoal, temos uma jornada pela igualdade racial, não é algo que começou ontem e não é oportunista. Assim como o programa da Bayer. Os resultados é que estão vindo agora. Não é só colocar as pessoas dentro das empresas, é pensar em um programa para formar lideranças, de desenvolvimento. É muito fácil dizer que a Lisiane lutou e conseguiu. Venho de um programa de bolsas desde a infância, com oportunidades que me deram, por desempenho acadêmico, estudando o triplo. Por que tem que ser tão desgastante e não pode ser um caminho normal?
Imaginou que chegaria até aqui?
Não! Quando estava na faculdade, se me dissessem que hoje sairia no Donna, não ia acreditar (risos). Acho que o mais genuíno é que não sonhei em trabalhar no Google, na Microsoft. Queria trabalhar com vendas em uma multinacional em São Paulo, mas em um estágio avançado. Nunca achei que seria uma voz relevante, que representaria pessoas no mercado. O que sempre pensei é que não posso esperar a sociedade mudar se tenho oportunidade para mudá-la.
Já se sentiu diminuída por ser uma mulher negra?
Posso dizer que as pessoas, muitas vezes, são racistas sem intenção. Prefiro acreditar que todo mundo é bom. Já tive mais de sete mil clientes, visitei muitas fábricas e empresas. Ouvi: "Mas você trabalha para a Microsoft mesmo?". Ou quando um colega pergunta: "Eu não te conheço, é estagiária aqui?". Ou quando dizem: "Tu é advogada com Ordem e tudo?". "Já tem MBA mesmo? É tu que dá aula mesmo?". Acho que o mais chato são essas microagressões do dia a dia. É se provar como mulher o tempo inteiro. Quando lidava com um assunto extremamente técnico na Microsoft, precisava virar a noite estudando as vírgulas porque sabia que meu conhecimento ia ser questionado. Estou em um ambiente que não está acostumado com a minha presença.
Você morou em Moçambique. Como a experiência lhe impactou?
Me transformou completamente. Fui para lá em 2013 para morar, voltei para o Brasil no fim do mesmo ano e, depois, retornei em 2017, para um trabalho voluntário. Era focado no uso de tecnologia em ambiente escolar sem conectividade. Cresci muito, queria devolver o que o país me deu. As pessoas precisam ir ao continente africano. É um lugar diferente, aprendi a viver com menos do que tenho.
Foram essas experiências que lhe impulsionaram a capitanear diferentes ações para a inclusão?
O Conselheira 101 começou por meio de um post no Linkedin. Só queria encontrar um conselheiro de admistração preto nesse país para eu me espelhar e entender a trajetória. É algo que quero daqui a 20, 30 anos. Consegui me conectar com nomes de grandes empresas, pessoas que nunca imaginei. Pensei: por que não criar um projeto para abrir espaço para mulheres iguais a mim, ou melhores que eu? Por que não? Não quero estar sozinha nesse lugar.
A pandemia trouxe um cenário de crise, desemprego e mudanças corporativas. Pensando nas mulheres, as desigualdades foram agravadas?
No início da pandemia falei que tínhamos entrado numa espécie de modo de sobrevivência. Só queríamos saber quando ia acabar, quantas máscaras tinham e esquecemos dos grupos minoritários. Temos um nível de desemprego alto entre mulheres e sobrecarga de tarefas: casa, marido, filhos, contas. É uma rotina pesada, muitas empreendem em razão do desemprego. No meio de tudo isso, meu medo foi de esquecermos das questões de diversidade. Entretanto, aconteceu todo o cenário de George Floyd. Mesmo num contexto de pandemia, ficamos grande parte do tempo conectados e não temos como evitar questões que estão aí. As mulheres sempre sofreram assédio, ganharam menos, ainda mais as negras, não podemos evitar esse assunto. O desafio é transformar indignação em ação.
A mulher negra acaba sendo a mais atingida nesse contexto?
Quando fui para São Paulo, vi que as pessoas não acreditam que existem negros no Rio Grande do Sul. E estamos falando de 20% da população. Nesse contexto de mulher preta e jovem inserida no mundo corporativo, me encaixo em quase todas as minorias. Ainda mais no mercado de tecnologia, que é muito masculino. E as estatísticas jogam contra nós. Somos a maioria que sofre violência doméstica e com desemprego. Mas, quando falamos de liderança no ambiente corporativo, somos minoria. O primeiro ponto é a representatividade, e tenho um papel que é ajudar com alternativas. Se você não tem uma mulher negra para essa vaga, me dá cinco minutos e o meu celular. Eu acho alguém.
E como as empresas podem abraçar a diversidade?
Primeiro, precisamos reconhecer que não estamos em home office. Estamos trabalhando em casa em tempos de distanciamento social. O desafio da retomada é como conviver em um cenário híbrido, como serão a políticas de promoção, de liderança. Não falamos sobre isso até agora. Além disso, não inovamos, apenas transformamos o físico no virtual. Pensando na mulher, que desempenha diversos papéis, o desafio é as empresas olharem com cuidado como podem ajudar. Flexibilizar a jornada? Fazer políticas diferentes de promoção? Tudo começa por ouvir os funcionários.
O empreendedorismo acaba sendo a única saída para muitas mulheres?
O que tenho visto de bom são associações e movimentos, como a de afroempreendedorismo gaúcho, por exemplo, comandada pela Maria Cristina Santos (Odabá - Associação de Afroempreendedorismo). Sempre fomos da natureza do coletivo. O problema é que seguimos empreendendo por necessidade, porque nos decepcionamos com o mundo corporativo, que é opressor, racista e machista e nos impede de chegar nos espaços de liderança. Para mim, a grande voz de empreendedorismo é a Adriana Barbosa, através da Feira Preta. Acredito que uma das maiores dificuldades do afroempreendedor é crédito. Por não ter uma sequência de educação financeira, acabamos sem crédito e não temos como crescer. Sobre o esvaziamento do ambiente corporativo, é real. Temos um sistema desenhado para não acolher minorias.
Estamos prestes a entrar no Mês da Consciência Negra. 2020 foi um marco contra o racismo?
Estamos colhendo o que foi semeado. Quando a gente tem o professor Silvio Almeida, tem Djamila (Ribeiro) no Roda Viva, em rede nacional, o Manoel (Soares) no É de Casa, quando se tem vozes negras potentes, eventos com preocupação de ter pessoas negras participando, vejo como crescimento. Mas temos muito mais. Precisamos olhar para o encarceramento do povo negro, a desigualdade social imensa, voltamos a figurar no mapa da miséria. Não podemos ter uma militância de hashtag, oportunista. Já vi empresa dizer: "Não vou mais fazer Black Friday". Então eu respondi: "Parabéns, mas o que você tem feito para contratar mais pessoas negras"?
O que falta riscar dos planos?
Em 10 anos, não sei se vou virar CEO, não tem muito CEO com 41 anos em multinacional de tecnologia (risos). Espero ter morado nos Estados Unidos e ter voltado, é uma experiência que quero ter. Talvez espere fazer parte de um conselho de administração. E espero que as estatísticas de conselheiros e líderes negros no Brasil tenha pelo menos dobrado até lá. Acho que é uma boa ambição, né?
Livros, podcasts, séries: o que faz a cabeça de Lisiane Lemos
- Data Science para Negócios, de Foster Provost e Tom Fawcett:
"É um livro mais orientado para a aula de MBA que dou na PUCRS de Big Data e é um tema que sempre gosto de me manter atualizada, também estou usando no MBA que estou fazendo na Dom Cabral."
- Garra, de Angela Duckworth:
"É um livro que gosto de ler e reli na quarentena, muito pensando em soft skills, habilidades comportamentais que temos que adquirir. Que mostra que os bem-sucedidos nem sempre são os mais inteligentes, mas os mais perseverantes. E que perseverança é um músculo que pode ser desenvolvido."
- Ubuntu, de Rosemar Lemos:
"Falando de diversidade, ações afirmativas, programas de cotas, indico o livro da minha mãe, que é uma especialista no assunto. É algo muito discutido e vale a pena ler."
- Acts of Faith, de Iyanla Vanzant:
"É minha dica de livro de cabeceira. Ele tem 365 dias de textos para meditação, de uma autora de que gosto muito. Ela fala muito de cura para população negra".
- Podcast: "O Meteora Podcast é de duas amigas minhas, a Cris e a Renata, nomeadas pela Forbes como criadoras negras inovadoras. Já o Becoming não precisa de muita explicação: é da Michelle Obama".
- Série: "The Playbook é uma série que fala sobre técnicos de esportes, e o meu episódio favorito é com o Patrick Mouratoglou, técnico da Serena Williams, sou muito fã. Fala de perseverança, técnica, que nem sempre são vitórias. Tento trazer essas lições de times de alta performance para a minha equipe".