E se os museus, as galerias e as praças exibissem pinturas e monumentos não em homenagem aos grandes personagens da história, mas aos anônimos, aqueles que, na absoluta maioria das vezes, jamais virarão matéria do Fantástico ou assunto de jornal? Pessoas cujo maior feito é sobreviver – apesar dos percalços. Não é pouca coisa.
A Beth, que tomou um pé na bunda do Carlinhos. Esqueceu dela mesma enquanto o Carlinhos se formava, cuidou dos filhos deles enquanto o Carlinhos trabalhava, segurou as pontas da casa nas crises do Carlinhos. Até que ele cansou daquela mesmice (foi o que justificou) e lançou-se ao mundo. Quer dizer, a um bairro um pouco melhor, a um apartamento com cozinha gourmet e vista e a algumas relações que não duravam muito, mas era bem o que o Carlinhos queria, aproveitar. A Beth desceu ao inferno, coitada. Não saía mais de casa, cansou os filhos e a família com a ladainha: ele não podia ter feito isso comigo, ele não podia ter feito isso comigo, ele não podia ter feito isso comigo. Nem ela sabe dizer por que acordou, em uma quarta-feira qualquer, e não chorou. Levantou, recolheu as roupas que os filhos sempre deixavam pela sala, achou que era hora de pintar o cabelo. Saiu de casa rezando para só encontrar algum vizinho na volta, mas claro que encontrou vários do jeito que estava, descabelada e abatida. Depois daquele dia, não que não continuasse doendo, a Beth reagiu. Foi se ocupar, ler, fazer crochê, ir ao cinema, ligou para as amigas, começou a maneirar na comida (colesterol subiu muito nos últimos tempos), a caminhar de manhã e está com a ideia de virar síndica profissional. Já começou o curso. Demorou, mas a Beth percebeu que cuidar dela era bem mais importante do que sofrer pelo Carlinhos. Merece um busto para inspirar outras e outros.
Agora, com um fiapo de esperança, tem achado que talvez as coisas melhorem. Do contrário, volta à praça outra vez. É exatamente lá, na Matriz, que deveria ficar a estátua dela.
A Sílvia, professora. Mais de 20 anos acordando antes do sol para estar na escola às sete da manhã. Ensinando matemática e rodando nas contas de casa. Casada com o Jorge, também professor. Os dois dividem as dívidas. A Sílvia nunca pensou em desistir, mesmo com os parcelamentos, a falta de investimentos, os maus momentos. Agora, com um fiapo de esperança, tem achado que talvez as coisas melhorem. Do contrário, volta à praça outra vez. É exatamente lá, na Matriz, que deveria ficar a estátua dela.
O Guilherme, que desde os 15 anos ajudava o pai no mercadinho da família, lá nos confins da Zona Sul. Hoje faz Direito na UFRGS. Trabalha o dia inteiro em um escritório de contabilidade, vai para a faculdade e tarde da noite, quando chega em casa, estuda para o dia seguinte. Como faz a Juliana, que cursa Medicina com uma bolsa do ProUni. Passa horas nos ônibus que a levam da Ilha da Pintada para a PUCRS. Quando vai para casa, estuda. Nos fins de semana, trabalha de garçonete para pagar o que a bolsa não cobre. Os retratos da Juliana e do Guilherme, abertos à admiração pública, logo serão inaugurados. E com as togas das formaturas.
O Maicon, que nos finais de semana treina capoeira com as crianças da Restinga. A Irene, que sustenta as filhas, e agora o neto, trabalhando como diarista. A Elsa, que protege cachorrinhos abandonados. O Neco, que participa do grupo do Sopão, comida para moradores de rua aos sábados. A Pietra e o Ricardo, que ficam na praia limpando os vestígios poucos civilizados dos veranistas. Tanta gente anônima que merece uma estátua, um quadro, uma menção honrosa, que seja. À vida real que orgulha, minhas sinceras homenagens.
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Aquela máxima do não se mexe em time que está ganhando, pelo jeito, não vale para o que está ganhando em Porto Alegre. Pessoal inventou, agora, de privatizar a Cinemateca Capitólio - onde tantos eventos democráticos da cultura acontecem, e a preços mais democráticos ainda. Onde se assistiu Parasita em sessão comentada muito, muito antes do sucesso do Oscar. Pois inventaram de "desburocratizar" o Capitólio, administrado hoje por servidores da Secretaria da Cultura que não burocratizam nada. E que mantém, além da programação excelente, um acervo histórico aberto a quem quiser pesquisar. Existe a modernidade e existe a jequice. Privatizar a Cinemateca Capitólio é um triste exemplo de pensamento jeca.