Já escrevi aqui sobre o canalha. Personagem fielmente retratado por Nelson Rodrigues em peças, crônicas e conversas de botequim. O tema é inesgotável, como sentenciou Nelsinho: “O canalha é uma figura tão rica, complexa, irisada, que exige mais do que uma, duas, ou trinta crônicas”. Pois é. Mas o personagem da semana é outro: o perverso.
Quem nunca desejou a morte de alguém? Mesmo que por pensamento, seja por pena ou desejo de vingança? Quem nunca, que atire a primeira pedra. Não é preciso viajar até o Oriente Médio ou pra fronteira da Rússia com a Ucrânia pra visualizar o desejo de morte consumado. A perversidade habita no meio de nós. Ou por que raios uma gurizada que recém abandonou as fraldas vai pra escola com faca na mochila pra matar a professora?
As fronteiras estão borradas. Aliás, creio que nunca a humanidade viveu (e viverá) em harmonia. Antes mesmo da construção dos primeiros muros, dividindo reinos e depois outros muros dividindo propriedades entre si, separando poderosos dos acorrentados, os seres humanos já se matavam por um pedaço de carne.
Existe também o perverso voyeur. O voyeur é “aquele que vê”. Calma aí, não fique preso à cena despudorada que a tua mente fantasiou ao ler a palavra voyeur. Aliás, Nelson adorava abusar do voyeurismo em seus espetáculos. Atenha-se aqui, àquele que vê, como o leitor, o ouvinte, o telespectador do noticiário, sobretudo o sensacionalista, que trata dos fatos como um espetáculo de horror.
Pode ser num ônibus, no boteco, no almoço em família, numa conversa trivial do zap zap, sempre tem aquela pessoa de antena ligada, pronta pra compartilhar a tragédia alheia. “Bah, nem te conto” e segue o fio... Quanto mais bizarro o crime, quanto mais mortes resultarem do acidente, quanto mais improvável tenha sido a causa do homicídio e, principalmente, quanto mais perto de sua vizinhança tenha sido a tragédia, mais engajamento e interesse vai despertar.
Mesmo sem apertar o gatilho ou degolar a vítima, o perverso voyeur está ali, na cena, à espreita, como um vulto. E, a depender de suas crenças e valores (ou da falta deles), o perverso voyeur pode vir a assumir o protagonismo num evento futuro. Afinal, como sentenciou Andy Warhol, no futuro, dizia ele, todos teríamos nossos 15 minutos de fama. Ou do que se alimenta o perverso se não da fama em meio ao anonimato?
O perverso voyeur pode ser tão cruel quanto o guri que esfaqueia a professora, ou o marido que mata a esposa. Não falo só da satisfação (quase prazer carnal) que muitos sentem ao compartilhar a morte de alguém. Falo também de quem, perversamente, dispara notícias falsas com a manifesta intenção de prejudicar a vida do outro. Porque, como eu dizia antes, aquele que vê, que lê, que ouve e compartilha a desgraça alheia, é um protagonista em potencial. Mesmo agindo silenciosamente está sempre pronto pra entrar em cena.
Por fim, o perverso — protagonista ou voyeur — pode ser traduzido como aquele que semeia contendas. Ou seja, aquele que gosta de ver o circo pegar fogo.
Quem nunca pensou nisso? Que atire a primeira pedra.