Caviar e espumante. Peixe e chardonnay. Pastel de nata e tinto do Porto. Algumas combinações entre pratos e vinhos são tão clássicas que já ficaram populares entre apreciadores da gastronomia ao redor do mundo.
Apesar do trabalho dos sommeliers, que são especialistas no assunto, saber harmonizar bebidas e comidas não é um conhecimento exclusivo dos profissionais. Na verdade, existem alguns princípios básicos que podem guiar o planejamento das refeições, começando pelo próprio paladar individual dos envolvidos.
— A premissa inicial para pensar em harmonização é saber o que a pessoa gosta de beber — define a presidente da Associação Brasileira de Sommeliers no Rio Grande do Sul, Caroline Dani.
Imagine juntar um prato de carne vermelha com um vinho encorpado rico em taninos, como poderia sugerir um profissional – porém, quem vai provar não gosta de vinho tinto. Por mais que a combinação seja tradicional, o que mais conta na hora da refeição é, impreterivelmente, o gosto de cada um.
— A harmonização só dá certo quando a experiência é boa — acrescenta a sommelière.
Dicas profissionais
Se pensarmos no mundo dos restaurantes renomados e sofisticados, com cardápios autorais, é quase obrigatório ter a presença de um sommelier na equipe. O trabalho do especialista pode ajudar a equilibrar os sabores dos alimentos com os da carta de vinhos e espumantes, valorizando o prato final.
Contudo, não é preciso ter formação profissional para escolher a melhor bebida para aquele jantar especial ou almoço de família. Existem elementos básicos da harmonização acessíveis a todos os públicos.
— O interessante é harmonizar por concordância. Harmonizar por contraposição é sempre mais difícil — opina Caroline.
Ou seja, buscar características na comida e na bebida que conversem ou concordem entre si. Uma dica frisada pela profissional é encontrar elementos em comum em ambos, como doçura ou peso.
Independentemente da combinação, a sommelière reforça que o objetivo permanece o mesmo:
— Que não tenha nenhum vinho esmagando a comida, nem comida esmagando o vinho, para conseguir o melhor aproveitamento de ambos.
Para pôr em prática
Na hora de aplicar as técnicas de harmonização, alguns princípios das bebidas devem ser considerados, entre eles: tanino, álcool, acidez, doçura e aroma. A regra geral, segundo Caroline, estabelece que comidas pesadas pedem vinhos pesados, enquanto as leves pedem vinhos de igual leveza. Assim, nenhum ponto se sobressai (ou acaba escondido).
Os taninos são encontrados na casca e nas sementes das uvas, o que os torna mais presentes nos vinhos que são fermentados com essas partes, como os tintos. São substâncias que aderem às proteínas do alimento, funcionando bem com carnes vermelhas ou de caça. Na boca, os taninos causam sensação de adstringência.
Não é porque a substância combina com proteínas, de forma geral, que vai funcionar da mesma forma com todos os tipos. Os peixes, por exemplo, costumam ser mais leves e, por isso, pedem vinhos que carregam a mesma leveza, como os brancos aromáticos. Um vinho com grande presença de taninos poderia esconder o pescado, já que essas bebidas costumam ser mais pesadas e encorpadas.
Caroline ainda chama a atenção para o que é possível adaptar dentro de uma refeição:
— O vinho a gente vai comprar em uma garrafa pronta, não temos como mudar, ele tem as suas características. O que podemos fazer é mudar elementos no prato — sugere a profissional, que propõe acrescentar ou remover ingredientes para melhor adaptar as receitas às bebidas.
Outra dica geral citada pela especialista é buscar acidez para compensar a gordura. Carnes mais gordas combinam com vinhos mais encorpados, como os que passaram um tempo em barricas de madeira. O contrário também é válido: ingredientes mais ácidos, como os tomates do molho ao sugo, podem ser igualados ou regulados com um vinho de traços mais doces (ou, até mesmo, um pouco de açúcar no cozimento).
O modo de preparo também deve ser considerado. Cada etapa de preparação dos alimentos e seus ingredientes acrescenta complexidades no produto final – e precisa ser levada em conta no momento de escolher o vinho ideal. Como a sommelière pontua:
— A harmonização só funciona na prática, é preciso provar.
Anota aí: como harmonizar
Anos de estudos e testes colocam os sommeliers em um patamar profissional no mundo das bebidas. Mas, afinal, como nós – as pessoas sem formação no ramo – fazemos para decorar todos os elementos que exigem atenção na hora de escolher um bom vinho? Ou, ainda pior, o que fazer quando o recomendado é um fermentado que nunca provamos e não sabemos se gostamos?
O Destemperados preparou uma “colinha” a partir da explicação da sommelière Caroline Dani.
Peixes e frutos do mar
Pedem vinhos leves e aromáticos, como os brancos. Filés assados, sushis e outras partes magras dos animais podem ser combinados com chardonnay, por exemplo, enquanto opções com mais gordura funcionam bem com vinhos com passagem por barrica, o que dá mais estrutura à bebida, sejam eles brancos ou rosés.
Carne vermelha e de caça
Da mesma forma, a harmonização vai depender do corte e dos acompanhamentos. Partes com mais proteína e menos gordura, como o próprio filé, combinam bem com tintos não tão encorpados, entre eles o merlot. Se o prato incluir cortes mais gordos ou carboidratos, como picanha no espeto ou polenta com ragu, o peso aumenta – e o vinho deve acompanhá-lo.
O mesmo serve para ovelhas e carnes de caça, que tendem a ser mais pesadas. Bons acompanhantes são o tannat e o cabernet sauvignon, encorpados e com forte presença de tanino, que também casam com churrasco.
Carne de porco, frango e outras aves
Assim como os bovinos, as carnes brancas também dependem da quantidade de gordura e do método de preparo na hora de escolher o vinho certo. A costelinha ao molho barbecue, por exemplo, carrega elementos agridoces e defumados. Um bom acompanhante são os vinhos feitos da uva marselan, comuns na campanha gaúcha e de corpo médio.
Peito de frango ou outros cortes leves, sejam eles cozidos ou grelhados, pedem vinhos não tão encorpados, como um chardonnay jovem ou um sauvignon blanc. Porém, se a galinha estiver em um ensopado pesado e com bastante gordura, a bebida pode ser mais encorpada, dos rosés de merlot e pinot até tintos leves.
Vegetais, legumes e saladas
O vinho ideal para cada vegetal deve considerar, primeiramente, a cocção. Legumes e verduras cruas têm perfis de sabor diferentes daquelas assadas, salteadas ou glaceadas com manteiga. O próprio ato de gratinar um vegetal estimula as notas mais doces do alimento – aquelas crostas caramelizadas formadas pela famosa reação de maillard.
Portanto, preparos mais leves combinam bem com brancos e rosés sutis. Conforme o sabor for complexificado, aposte em brancos com breve passagem por barrica ou rosés de merlot, que evocam a presença de frutas na boca.
Queijos
Os queijos são um dos grupos alimentares mais complicados de se harmonizar, segundo Caroline. Isso porque os sabores são complexos, às vezes salgados e gordurosos e outras, doces e aerados. De forma geral, vinhos ácidos combinam com queijos de maior percentual de gordura, sejam duros ou macios. Aqueles mais leves, como o brie, podem ser casados com brancos tipo chardonnay.
— A gente costuma brincar que tábuas de frios são o drama dos sommeliers, porque, na verdade, são vários elementos diversos. E como eu harmonizo? — questiona, retoricamente, a sommelière — Eu tenho queijos super leves até um gorgonzola; embutidos leves até os mais defumados, com pimenta ou menos pimenta.
Os queijos azuis são o maior desafio. O alimento é forte, defumado e salgado, sendo um dos casos em que a harmonização por contraposição ajuda. Ao invés de usarmos vinhos mais pesados para igualar a força – como os barricados ou altos em taninos, que potencializam o amargor – o ideal é buscar um elemento doce para balancear o queijo. Para Caroline, vinhos de sobremesa fazem o par ideal. Uma das duplas mais famosas é o gorgonzola com o branco francês Sauternes.
Massas, risotos e pizzas
Massas, batatas, arroz, pizzas ou outros carboidratos que estejam acompanhados de cremes, molhos e recheios devem ser analisados a partir dos seus ingredientes. O vinho escolhido precisa ser harmonizado com os vegetais, queijos ou proteínas que vierem a compor o prato, da mesma forma que seria como se os elementos estivessem isolados. Caso a bebida seja usada durante o preparo, como no caso dos risotos com vinho branco, pode-se usar a mesma para beber depois.
Doces
Em geral, as sobremesas harmonizam com vinhos doces, pensando na concordância, mas é preciso levar em conta as peculiaridades de cada ingrediente. Assim como os queijos, o chocolate pode ser uma dor de cabeça para os sommeliers. Os sabores intensos dos amargos derivados de cacau precisam ser equilibrados com vinhos também encorpados, como os fortificados, cujo teor alcoólico passa de 16%. Tintos funcionam desde que não sejam muito tânicos, e brancos doces também, especialmente com chocolate ao leite ou branco.
Caso a sobremesa envolva laticínios, como queijo, manteiga ou leite condensado, a proporção de gordura é maior – e aqui vale a regra de ouro: comida gordurosa pede bebida ácida. Doces com frutas ou ervas precisam de bebidas que realcem as mesmas notas. Em geral, a sommelière Caroline recomenda espumantes e vinhos brancos, como os de colheita tardia, podendo variar a doçura conforme a quantidade de açúcar no prato.
O vinho ideal é algo pessoal
No fim do dia, o seu vinho ideal será aquele que você gosta de beber. Dos leves, frutados e aromáticos até os cheios de taninos e alto teor alcoólico, o arranjo só vai dar certo se estiver no agrado do cliente.
Se você provar diferentes combinações, é capaz de expandir o paladar e descobrir suas novas bebidas preferidas. Conhecer as técnicas gastronômicas ajuda no percurso, é claro.
— Acho que a gente tem versatilidade em produtos (vinhos) que garantam todo tipo de harmonização. E de novo: a harmonização passa pela experiência, é preciso gostar — conclui Caroline Dani.
*Produção: Caroline Guarnieri