
11 horas de 26 de abril de 1965. Em meio a um cenário modesto, ornado com lousa, livros e carteiras escolares, a professora Fernanda Barbosa Teixeira comandava sua primeira aula para um grupo de crianças que, assim como ela, acabariam por entrar para a história da televisão brasileira. Durante cerca de uma hora, a turma estudou, cantou, brincou e rezou. Tudo foi registrado pelas novíssimas câmeras da TV Globo, que inaugurava ali a sua primeira transmissão televisiva.
O programa responsável por selar o nascimento da emissora, então um canal local do Rio de Janeiro, recebeu o nome de Úni-Dúni-Tê. O formato era inspirado no sucesso norte-americano Romper Room, que conquistou os espectadores dos Estados Unidos por quatro décadas, mas acabou não fazendo a cabeça do público brasileiro.
O Úni-Dúni-Tê permaneceu apenas três anos no ar, mas sua existência efêmera não se estendeu à emissora que ele inaugurou: neste sábado (26), a TV Globo completa 60 anos de fundação, ostentando uma trajetória que se confunde com a própria história da televisão no país.
Para a jornalista Cristiane Finger, professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUCRS e coordenadora do grupo de pesquisa Televisão e Audiência (GPTV), é impossível traçar a linha do tempo da TV no Brasil sem passar pela cronologia da emissora – hoje a maior rede do país e uma das maiores do mundo.
— A Globo é referenciada como "a maior" por conta da sua estrutura e dominância de audiência, mas também porque foi pioneira em inovações tecnológicas, artísticas e gerenciais que acabaram por moldar o gosto dos espectadores e instaurar um “jeito brasileiro” de se fazer televisão — sintetiza.
Entretanto, a pesquisadora pondera que a jornada da emissora rumo à hegemonia não foi isenta de complexidades. A TV Globo demorou a conquistar o público. Durante os primeiros meses de exibição, a novata sequer passava da quinta colocação nos rankings de audiência, perdendo para Tupi, Excelsior, Continental e outras veteranas.
A partir do momento que a emissora determina um modelo de qualidade a ser atingido pelas suas produções, ela eleva a sua importância mercadológica
CHRISTIANE CAMPOS
Doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora do grupo Televisões
Paralelamente ao baixo engajamento dos espectadores, a emissora ainda enfrentava um imbróglio jurídico que colocava em xeque a legalidade de sua fundação, viabilizada por uma parceria entre o empresário brasileiro Roberto Marinho e o grupo estadunidense Time-Life. A legislação da época proibia o controle estrangeiro de emissoras de rádio e TV nacionais, o que levou à instauração de uma CPI para investigar o teor da relação mantida entre as duas empresas.
Havia suspeita de que os estadunidenses tivessem poder de decisão sobre a emissora brasileira, hipótese negada por Roberto Marinho em seus depoimentos à CPI. Segundo o fundador da Globo, a parceria consistia em um “contrato de assistência técnica”, que previa injeção de capital e fornecimento de consultoria especializada por parte da Time-Life, mas não dava à empresa o direito de participar da gestão da Globo.
Tecnologia e decisões estratégicas
O desfecho para o caso veio somente dois anos mais tarde, em 1967, quando o Governo Federal determinou que a parceria operava de maneira legal. Ainda assim, o convênio marcou de forma polêmica os primeiros anos da emissora — mas também foi crucial para que ela conseguisse conquistar espaço na briga pela audiência, pondera a professora Cristiane Finger:
— Questionável ou não, a parceria com a Time-Life oportunizou à Globo um desenvolvimento tecnológico que a colocou na frente das demais emissoras do país. Oferecer ao público uma imagem mais bonita, um som mais limpo, era algo que fazia diferença porque, mesmo naquela época, ninguém queria fazer esforço para assistir televisão. Todos buscavam uma experiência prazerosa, o que passa também por essas questões técnicas.
Mas se “molduras boas não salvam quadros ruins”, como cantou Charlie Brown Jr, em Longe de Você, a boa qualidade da imagem também não era motivo suficiente para fidelizar o público. Além de excelência técnica, deveria haver excelência de programação.
Para alcançá-la, Roberto Marinho recorreu à ousadia do produtor de rádio e TV Walter Clark. O paulista assumiu a direção-geral da Globo em dezembro de 1965, com carta branca para reformular a programação da emissora, desde que as mudanças elevassem os modestos índices de audiência registrados até ali. Ele fez mais.
Visionário, o diretor não almejava somente aumentar os números. Clark queria moldar hábitos e inserir a emissora na vida dos espectadores, o que de fato conseguiu.
— Uma das primeiras decisões do Clark foi que a Globo seria a emissora que encerraria mais tarde a sua programação. As televisões da época não ficavam 24 horas no ar, então, terminar a programação mais tarde que as demais levaria o público a terminar o dia com a TV sintonizada na Globo. Deste modo, quando o aparelho fosse religado na manhã seguinte, ele já estaria no canal, aumentando a chance de o espectador permanecer ali durante todo o dia — explica a professora Cristiane Finger.

Também tem a assinatura de Walter Clark a implantação da chamada “grade horizontal”. Diferente do modelo americano de programas semanais, replicado pela maioria das emissoras brasileiras da época, o formato apostava em uma programação estável e diária. Assim, todos os dias, sempre na mesma faixa-horária, o espectador poderia assistir ao novo capítulo de seu programa preferido.
— Hoje parece algo muito óbvio e básico, mas foi uma estratégia visionária para a época — pontua Cristiane Finger. — Isso fez com que o espectador criasse hábitos relacionados à televisão, como assistir ao jornal da manhã, assistir ao filme da tarde ou assistir à novela da noite. Foi uma aposta que, de tão acertada, acabou virando uma característica da televisão brasileira como um todo.
Padrão Globo de Qualidade
Walter Clark divide o mérito de alçar a Globo ao patamar mais alto do país com um nome que se tornaria ainda mais afamado que o dele: José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni. Contratado pelo próprio Clark como uma espécie de braço direito, ele ocupou o lugar deixado pelo mentor na alta chefia da Globo após a saída dele, em 1977.
Como diretor-geral da emissora, Boni foi o responsável por cunhar os regimentos internos que ficariam conhecidos como "Padrão Globo de Qualidade".
Por meio de memorandos enviados rotineiramente aos diferentes núcleos de conteúdo da emissora, do jornalismo à dramaturgia, Boni analisava com minúcia as atrações que eram exibidas ao longo da grade de programação. Nos textos, detalhava o que deveria ser mantido, melhorado ou rejeitado.
A Globo continua sendo a maior produtora de novelas do país, porque a história da telenovela brasileira se confunde com a história da emissora
DANIEL CASTRO
Jornalista e crítico de televisão
Em entrevista concedida ao portal Memória Globo, o ex-diretor explica que a alcunha de "Padrão Globo de Qualidade" não partiu dele, tampouco da emissora. A nomenclatura veio de fora, quando os ajustes implementados por ele começaram a chamar atenção do mercado.
Para Boni, sua atuação era apenas uma "preocupação em sempre fazer melhor":
— A cada momento que a gente atingia um estágio, queríamos atingir outro. A minha ideia sempre foi a de que a televisão não pode regredir. Ela tem que avançar e trazer consigo os espectadores, em um progresso contínuo. Caso contrário, corre o risco de se tornar medíocre.
Independentemente do nome, a preocupação com a qualidade foi essencial para a consolidação da Globo como líder do mercado televisivo do país. É o que explica Christiane Campos, doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora do grupo TeleVisões, também da UFF:
— A partir do momento que a emissora determina um modelo de qualidade a ser atingido pelas suas produções, ela eleva a sua importância mercadológica. Esse padrão escancara também para o público a diferença que havia entre as produções globais e as das concorrentes, que tentam reproduzir o molde da TV Globo.
Novelas como carro-chefe
Para o jornalista e crítico de televisão Daniel Castro, fundador do portal Notícias da TV, falar de Padrão Globo de Qualidade implica falar em telenovela, porque foi por meio dos folhetins que a emissora imprimiu com maior ênfase a sua assinatura.
— A Globo mudou o patamar da telenovela no Brasil. Eu fui criança nos anos 1970, vi as novelas da Globo e as novelas da extinta TV Tupi. Com 10 anos, já conseguia perceber que as da Globo eram melhores — lembra o jornalista.
O primeiro folhetim global foi Ilusões Perdidas, cujo primeiro capítulo foi exibido na noite da estreia da emissora, em 26 de abril de 1965. A trama era assinada por Ênia Petri, com elenco formado por nomes como Leila Diniz, Reginaldo Faria e Osmar Prado.

Como o restante da programação da emissora naquele ano, a novela não foi um fenômeno de audiência. Contudo, demarcou a entrada da Globo no formato que, àquela altura, já havia conquistado o coração dos brasileiros.
A primeira grande novela veio em 1969: Véu de Noiva, escrita por Janete Clair, que ainda viria a assinar outras histórias de sucesso na emissora. Entre eles está o folhetim seguinte da faixa horária noturna, Irmãos Coragem, que ultrapassou a audiência da final da Copa do Mundo de 1970 e consagrou a autora como uma das maiores novelistas do país.
Dois anos depois, Selva de Pedra, também de Janete Clair, escancarou a preferência do público pelos folhetins da TV Globo: a novela protagonizada por Francisco Cuoco e Regina Duarte chegou a 100% de participação no Rio de Janeiro, audiência inédita na história da televisão brasileira.
Ao longo das duas décadas seguintes, a emissora ocupou com tranquilidade o lugar de maior produtora de novelas do país. Tramas como Gabriela, Saramandaia, A Escrava Isaura, O Astro, Roque Santeiro e Vale Tudo viraram verdadeiras paixões nacionais, lembradas ainda hoje por espectadores saudosistas.
Desafios do novo século
A virada dos anos 2000 também veio acompanhada de folhetins emblemáticos, que se renovaram conforme a evolução dos tempos. Novelas como O Clone, Laços de Família, Mulheres Apaixonadas, Senhora do Destino, Caminho das Índias e Avenida Brasil retrataram as mudanças da sociedade e fomentaram discussões de interesse coletivo, como destaca a pesquisadora da UFF Christiane Campos:
— Ao longo desses 60 anos, a Globo exerceu o importante papel de acender determinados debates entre a sociedade. As novelas fazem com que as pessoas criem intimidade com questões que talvez elas não teriam contato em suas vidas cotidianas. Assim, acabaram ajudando a questionar valores que se mostravam ultrapassados e instituir mudanças.

Conforme o jornalista Daniel Castro, a hegemonia das novelas da Globo só experimenta um tipo de ameaça na última década: a ascensão dos folhetins de temática religiosa, que acompanharam o crescimento da população evangélica neopentecostal no país.
— Quando a TV Tupi acaba, em 1980, a gente vai ter a TV Manchete fazendo algumas boas novelas, também o SBT, mas nada com constância de sucesso. A Globo só vai ter uma concorrência relevante em 2015, quando a Record começa a produzir as novelas bíblicas — analisa Castro.
— Ainda assim, a Globo continua sendo a maior produtora de novelas do país, porque a história da telenovela brasileira se confunde com a história da emissora. Há décadas, a Globo faz novelas das seis, das sete e das nove, em uma verdadeira linha de fábrica — pondera.
Concorrência com o streaming
Nos últimos anos, a emissora até viu a audiência de alguns de seus folhetins cair. Apesar disso, tramas como A Força do Querer, Vai na Fé e o remake de Pantanal conseguiram atrair e engajar os espectadores. O próprio remake de Vale Tudo, no ar desde o início de março, vem elevando as médias da emissora, mas em moldes bastante distintos dos que eram vistos nos anos de ouro das novelas globais.
Castro observa que a redução de audiência afeta não somente os a Globo, mas a televisão aberta de um modo geral. Frente a ascensão das redes sociais e das plataformas de streaming, a disputa pela atenção do público alçou um outro patamar, que as emissoras brasileiras ainda estão aprendendo a contornar.
A Globo conseguiu fazer a conexão entre a TV aberta e o streaming de uma maneira que, em qualquer plataforma, a gente enxerga uma só Globo. Aproveitou o que cada uma tinha de melhor e segmentou a sua oferta de conteúdos
CRISTIANE FINGER
Jornalista, professora e pesquisadora
A aniversariante deste sábado é quem tem se saído melhor.
— Os parâmetros de audiência mudaram. Hoje, mais de 25 pontos é uma audiência para se festejar. Mais de 30, é para soltar rojão, porque a gente tem uma fragmentação muito grande do consumo. Enquanto a novela da Globo está passando, milhões de pessoas estão assistindo ao streaming, milhões estão no YouTube, milhões estão nas redes sociais e milhões estão assistindo à novela da Record. Ainda assim, só quem bate 25 pontos de audiência é a TV Globo — analisa Castro.
O ponto de vista é compartilhado pela professora da PUCRS Cristiane Finger, que não vê um cenário de crise no horizonte da emissora. A pesquisadora destaca que, seis décadas após a sua fundação, a TV Globo permanece líder de audiência entre os canais abertos e demarca seu lugar no streaming por meio do Globoplay, plataforma lançada em 2015.
— A Globo conseguiu fazer a conexão entre a TV aberta e o streaming de uma maneira que, em qualquer plataforma, a gente enxerga uma só Globo. Mais do que isso, ela conseguiu aproveitar o que cada uma tinha de melhor e segmentar a sua oferta de conteúdos. Fora os canais fechados e os demais braços da emissora. Até quando fomos ao cinema assistir ao filme brasileiro mais falado do momento, Ainda Estou Aqui, nós estávamos dentro do ecossistema da Globo — observa Cristiane.
É consenso entre os especialistas ouvidos pela reportagem que, neste sábado, a TV Globo chega aos 60 anos como uma das maiores instituições culturais do país. É verdade que já não reina sozinha, mas continua sendo a principal referência quando o assunto é fazer televisão no Brasil.
— A TV aberta não vai morrer tão cedo. Em um país desigual como o nosso, a televisão gratuita ainda é a mídia mais relevante. E a Globo, com tudo o que construiu, caminhará ao lado dela. Pode até haver uma certa relação de amor e ódio por parte do público, mas a emissora é mais querida do que qualquer outra — conclui Daniel Castro.
