Por Vanessa Scalei
Jornalista, doutoranda em comunicação na PUCRS
Pela segunda vez na história, a Globo interrompeu a produção de seu principal produto. A partir desta segunda-feira, não serão exibidos capítulos inéditos da novela das nove. Desta vez, não houve imposição governamental para tirar a obra do ar. A decisão foi da própria empresa, que resolveu suspender praticamente toda a sua grade de entretenimento em virtude da pandemia de coronavírus. Uma medida extrema que evidencia a gravidade da situação que vivemos.
Amor de Mãe, trama escrita por Manuela Dias – para mim, a melhor novela da faixa desde Avenida Brasil (2012) – será paralisada em seu 102º capítulo e não tem data para retornar. Para justamente em seu ponto de virada, pois geralmente o 100º episódio (exibido na última quinta-feira) marca o momento em que o folhetim começa a se encaminhar para o desfecho revelando mudanças nas histórias dos personagens centrais.
Apenas durante o regime militar a Globo havia cessado gravações de sua principal novela. Foi em 1975, quando a censura federal proibiu Roque Santeiro, de Dias Gomes, de ir ao ar bem no dia de sua estreia. O texto foi considerado subversivo e um atentado à moral e aos bons costumes. Sem ter o que fazer, a emissora reprisou Selva de Pedra (exibida originalmente em 1972) até que conseguisse produzir capítulos suficientes de uma nova atração – no caso, Pecado Capital, de Janete Clair. Com o final do período ditatorial no Brasil, Roque Santeiro ganhou outra versão em 1985, tornando-se o sucesso que consagrou Regina Duarte como Viúva Porcina. Depois disso, apenas em 1983, com a morte de Jardel Filho e o consequente encurtamento de Sol de Verão, a Globo precisou exibir uma obra antiga até ter produção inédita.
Parar a novela das nove sempre pareceu improvável. Nem quando a obra vai mal em índices de audiência isso é feito. Desta vez, foi. Justamente com um trabalho que faz sucesso entre público e crítica. Ao tirar do ar Amor de Mãe – e programas como as novelas das seis e das sete, Malhação, Encontro com Fátima Bernardes, Mais Você e Altas Horas – a empresa deixou claro que a crise necessita de atitudes concretas. Toda a grade de programação precisou ser revista. O entretenimento cedeu espaço ao jornalismo. Mas não foi uma medida pensada estrategicamente apenas para ampliar a cobertura dos acontecimentos. As gravações foram suspensas para evitar que elencos e equipes de produção fossem expostos ao risco de contágio. Com isso, a Globo adotou as medidas de prevenção recomendadas pela Organização Mundial da Saúda (OMS). Mais do que levar informações corretas sobre o que se deve fazer nesse momento, a emissora deu o exemplo. Já havia feito isso ao tirar o auditório do Domingão do Faustão, no último domingo. Depois, outros canais seguiram o mesmo caminho, com cancelamento de gravações e exibição de programas sem plateia.
Embora alguns torçam o nariz, novela é sim um bem cultural brasileiro. É onde o povo se reconhece, é um programa visto por milhões de pessoas todas as noites. Constitui um hábito cultural já comprovado por vários estudos acadêmicos. E, também, é um bem econômico, que rende muito para a Globo. Inclusive é um produto de exportação, com vários títulos sendo vendidos para outros países. Cancelar os folhetins poderá trazer enormes prejuízos à empresa.
Com as reprises de tramas antigas – Fina Estampa (2011-2012), no horário das 21h, e Totalmente Demais (2015-2016), na faixa das 19h –, a partir desta segunda-feira, não estão em jogo apenas questões econômicas, como a perda de anunciantes.
A emissora sabe que poderá perder audiência, pois o público pode preferir assistir a outras coisas. Ainda mais agora que todo mundo precisa ficar em casa para evitar se expor ao coronavírus e tem tempo de sobra para ver TV. Hoje, há uma infinidade de opções disponíveis, especialmente em streaming. O cenário é bem diferente do que era em 1975, quando Roque Santeiro não estreou e a concorrência se resumia a uma meia dúzia de canais. Ainda mais agora, quando a realidade está tão dura e o entretenimento é a válvula de escape disponível a todos – pois a televisão é o único bem cultural que chega a 97,2% dos lares brasileiros segundo dados do IBGE – para tentarmos esquecer por um tempo do mundo lá fora.
A Globo arriscou alto com essa ação, mas fez o correto. Adotou uma medida drástica que poderá lhe custar milhões em dinheiro e vários pontos nos índices de medição de audiência. Mas teve a responsabilidade de agir certo em um momento que requer a mobilização de todos para o enfrentamento da pandemia e no qual muitas pessoas, empresas e, inclusive, governantes têm tido atitudes irresponsáveis que podem custar vidas.