Uma noite fria de 1979, em Paris, estimulou Alceu Valença a escutar os discos de Jackson do Pandeiro (1919-1982). A audição o inspirou a compor um grande sucesso de sua carreira, Coração Bobo. Essa é uma das histórias que o artista pernambucano conta na série musical Ao Vivo no Soma, da produtora gaúcha SKR Films, que ganha seu segundo capítulo nesta terça-feira (10), às 21h, no canal pago Music Box.
Em entrevista a GaúchaZH, Alceu conta que convidou o próprio Jackson para cantar Coração Bobo com ele pela primeira vez, após voltar ao Brasil. O mestre sugeriu uma pequena troca na letra – a palavra “explode” por “pipoca” (E ficou: “O coração dos aflitos / pipoca dentro do peito”). Alceu viu que a troca ficou muito melhor e, meses depois, lançou o disco homônimo.
— Até então minha carreira era marcada por canções metafóricas, que combatiam a censura, uma sonoridade com timbres quase psicodélicos e tal. Coração Bobo foi um mergulho nas minhas referências primeiras. Se ela tem alguma mensagem é essa. Conheça a sua identidade, tome posse dela — diz Alceu Valença.
O episódio também revela que o hit Anunciação correu o risco de não existir. Após comprar uma flauta em Porto Alegre, Alceu compôs a faixa em Olinda, enquanto caminhava pela rua. Uma ex-namorada gostou da melodia e, prontamente, ele a registrou em um papel.
— Se ela não tivesse me dito que era bonita, tinha perdido a música — relembra.
Essas histórias também emocionam quem está por trás das câmeras do seriado. Tiago Becker, um dos fundadores do estúdio Soma, localizado no bairro Partenon, em Porto Alegre, diz que a energia do músico “contaminou todos”:
— Foi muito marcante vê-lo resgatar suas origens musicais mais remotas por meio dos cânticos populares que seu avô entoava — destaca Becker, que faz a produção musical do programa.
Com curadoria artística de Leo Henkin, Ao Vivo no Soma destaca a carreira de artistas como Humberto Gessinger, Frank Jorge e Nei Lisboa.
— Na minha função de escolher artistas, o meu critério é artistas que eu gosto, independentemente do estilo e de ser muito, médio ou pouco conhecido. A dificuldade foi selecionar, pois há um monte de artistas excelentes neste país — destaca Henkin, que se inspirou no especial Live from Abbey Road, do canal britânico BBC, para realizar o projeto.
Lembranças
Segundo Sammy Roos, diretor geral do programa, a proposta foi reunir décadas diferentes de artistas com um mesmo propósito, o de criar um conteúdo consciente para sua geração. Assim, o produto deve ser uma fonte de inspiração para mais pessoas trabalharem com música.
— Um programa de música direcionado para o Brasil, mas originado e gravado no Sul pode contribuir pra criação desta nova geração de produtores, artistas, músicos e do público em geral. O Rio Grande do Sul é um berço de artistas muito talentosos e de um público que sempre foi caracterizado como muito exigente, torço para que este projeto toque os gaúchos — acredita Roos, que está fechando um ciclo de quase 20 anos de carreira como diretor de filmes de música.
A visita ao Soma foi marcada por um reencontro de Alceu Valença com o produtor cultural Claudinho Pereira, a quem conhece desde os anos 1980:
— Quando eu estava numa espécie de litígio com minha gravadora, foi ele quem me avisou que o departamento de divulgação da companhia havia exigido que as rádios tirassem minha música da programação. Briguei com as gravadoras, sempre tive essa postura de não fazer concessões ao mercado.
Alceu reforça que tem forte ligação com Porto Alegre. Costuma caminhar pelo Parcão e pelo bairro Moinhos de Vento quando vem à cidade, já homenageada nas canções P da Paixão e Senhora Dona – esta dedicada ao poeta Mario Quintana. Alceu acredita que Pernambuco e Rio Grande do Sul têm identidades fortes e possuem diversas semelhanças.
— Parecem não caber no Brasil ao mesmo tempo em que expressam uma brasilidade única, são quase contrapontos complementares. Na época de Vargas, houve uma migração de pernambucanos para o Rio Grande do Sul, incentivados pelo governo, para trabalhar nas lavouras. Quando eu era menino, no interior de Pernambuco, ouvia dizer que o pernambucano é o gaúcho a pé (risos).
Ao Vivo no Soma
Todas as terças, 21h, no Music Box Brazil. Reprises: quartas-feiras, 9h; e sextas-feiras, 14h30min